Corpo e alma: os meandros do desejo

Corpo e alma: os meandros do desejo

Corpo e Alma

Os meandros do desejo

Dalvanira Lima, Psicanalista

04 de abril de 2018

 

À primeira vista, “Corpo e Alma” poderia ser mais um filme em que o argumento principal se baseia numa doença física ou psíquica, como tantos outros já vistos no cinema. Porém, ainda que várias características do comportamento da personagem principal, Mária (Alexandra Borbély), leve-nos a pensar que ela sofra de uma disfunção associada, talvez em algum grau, ao autismo, em nenhum momento isso se explicita; ou melhor, a construção da personagem não fica reduzida à nomenclatura de uma patologia.

No filme, Mária é admitida num abatedouro e indústria de carne bovina como controladora de qualidade. Vemos então que, embora tenha autonomia para morar sozinha e trabalhar, suas atitudes são calculadas, e os comportamentos nos parecem automatizados. Uma impressionante capacidade de memorização funciona como uma espécie de manual de instruções a que ela recorre para desempenhar as tarefas do dia a dia. É como se as experiências sensoriais não deixassem marcas e nem registro corporal, daí a necessidade de que absolutamente tudo ficasse gravado na memória.

Além disso, o que de imediato chama a atenção de seus colegas de trabalho é o fato de Mária não corresponder às tentativas de integrá-la ao grupo. Quando esse comportamento é relatado a Éndre (Géza Morcsányi), diretor financeiro da empresa, ele mesmo se empenhará em dela se aproximar, no início, sem sucesso.

No entanto, o obstáculo de comunicação entre os dois parece encontrar uma maneira de ser transposto quando a psicóloga da empresa, pensando tratar-se de uma brincadeira, coloca Mária e Éndre frente a frente para se explicarem porque contaram a ela o mesmo sonho quando perguntados, em suas respectivas entrevistas, o que haviam sonhado na noite anterior.

Cena do sonho

Ambos sonharam que dois cervos, macho e fêmea, procuravam por comida numa floresta e que seus focinhos se tocavam quando bebiam água num riacho. Curiosamente, ao contarem o sonho, eles não só descrevem a cena como Éndre se reconhece como sendo o cervo macho e Mária, por sua vez, a fêmea.

O Sonho, segundo Freud, em sua essência mais íntima, significa uma realização de desejo. Desse momento em diante, em sucessivos sonhos se dará a aproximação de Mária e Éndre, cabendo a cada um se haver com os percalços de decifrar o desejo que esses sonhos revelam. De fato, na sequência dos sonhos, a alternância na presença dos cervos, por vezes juntos, outras vezes apenas o macho ou a fêmea, representa as tentativas de aproximação, nem sempre bem-sucedidas, que se dão entre os dois, na vigília.

Se, por um lado, Mária se defronta com o novo, coisas as quais ela não consegue nomear, por outro, Éndre reencontra o desejo há muito entorpecido.

E se, inicialmente, nossa atenção se fixa no comportamento de Mária, no automatismo de suas ações, que, em alguns momentos, chega a provocar risos no cinema, com o desenrolar da história, também nos voltamos para Éndre, ao percebermos o quanto os dois se assemelham quando defrontados com o inusitado do amor e do desejo.  

 É interessante observar como o fato de Éndre não ter sensibilidade em um dos braços, membro que parece mais um apêndice, aproxima e o identifica com a falta de sensibilidade corporal de Mária. Trazer para o corpo o desejo que urge no inconsciente e se revela no sonho não será um desafio só de Mária.

Éndre (Géza Morcsányi) e Mária (Alexandra Borbély)

Pelo lado de Mária, essas tentativas serão marcadas pela busca de reconhecimento do próprio corpo. Mais uma vez, ela recorre ao manual de instruções e à concretude das experiências, lançando-se numa jornada pelos sentidos, como se pudesse encontrar um modo de usar para cada um deles. Contudo, ainda que permita à Mária decifrar até o significado de um olhar, esse manual não dirá a ela como se comportar diante do interesse que surge em relação a Éndre. E, na tentativa de descobrir, seguem-se cenas marcantes, como a do parque, em que Mária vai observar casais se beijando, ou quando vai a uma loja de disco e passa o dia inteiro ouvindo CDs sem se decidir por nenhum; acaba então levando um de músicas românticas que a vendedora lhe recomenda.

 Finalmente, depois de idas e vindas, o encontro de Mária com Éndre, ou melhor, a união de corpo e alma, acontece quando a palavra atravessa o corpo, na declaração que ele faz à amada: “Eu te amo tanto”, ao que ela responde: “Eu também te amo muito”.  

 Esse final me fez lembrar de uma passagem em que Lacan cita a frase de La Rochefoucauld: “Há pessoas que nunca se haveriam apaixonado, se nunca tivessem ouvido falar de amor”. Sobre isso, diz Lacan: “não no sentido romântico de uma ‘realização’ imaginária do amor, que fizesse disso uma amarga objeção a ele, mas como um reconhecimento autêntico do que o amor deve ao símbolo e que a fala comporta de amor”.

 Nesta perspectiva, podemos entender por que de nada adiantou para Mária ouvir de outras pessoas sobre o amor – isso equivaleria a procurar o significado num dicionário. Se o sonho estava marcado pelo simbólico quando Mária e Éndre se reconhecem nos cervos, é na assunção do amor e do que ele representa para cada um que o encontro acontece.

Corpo e Alma tem o mérito de reconhecer em Mária, que sonha, sua condição de sujeito desejante, e para o qual a subjetividade não pode se reduzir a regras adaptativas de adequação social. Na verdade, não pode e não deve se reduzir para nenhum de nós.

Corpo e Alma (Testről és lélekről, título original), Hungria, 2017, dirigido por Ildikó Enyedi.