YouTuber ou guru?Um desafio ao espírito crítico na web

YouTuber ou guru?Um desafio ao espírito crítico na web

Youtuber ou guru?

Um desafio ao espírito crítico na web

Dalvanira Lima, Psicanalista

02 de abril de 2019

A internet trouxe um novo personagem para a cena diária: o youtuber. Ele já virou até verbete do dicionário Oxford, que na sua definição, é “um usuário frequente do site de compartilhamento de vídeos YouTube, especialmente alguém que produz e aparece em vídeos no site”.

Quem tem acesso à web dificilmente dirá que nunca assistiu a um vídeo de algum youtuber, seja para obter uma dica de maquiagem ou de como usar um eletrodoméstico, ouvir a experiência de quem sofre da sua mesma doença, conhecer melhor um tema qualquer. 

A par da diversidade de temas e interesses, chamo a atenção para duas características muito comuns nesses vídeos: a identificação do “seguidor” com o youtuber e o formato de tutorial dos conteúdos.

No primeiro caso, essa identificação com o youtuber pode ser criada a partir do interesse por determinado tema, da admiração, de experiências em comum ou do sentimento de pertencimento a um determinado grupo que ele represente.

De qualquer forma, a palavra “seguidor”, utilizada para designar aquele que acompanha com frequência o canal do youtuber, já nos dá uma ideia do quanto pode ser significativa sua influência sobre seus admiradores.

Quanto ao formato de tutorial, atribuo ao fato de que na sua maioria, os youtubers, a partir de suas experiências pessoais, ensinam e dão dicas de “como fazer”, quer seja para desentupir o ralo da pia ou para reagir aos sintomas de uma depressão. 

Ainda que identificar-se com o youtuber ou aproveitar suas dicas não sejam um problema, o que me pergunto é o quanto há de afirmação de nosso narcisismo e recusa a tudo que possa ameaçá-lo nessas identificações, ainda mais se pensarmos que grande parte de nosso tempo e de nossas relações hoje estão se dando no espaço virtual.

Os processos de identificação fazem parte de nossa constituição como sujeitos e se reeditam durante toda a vida. Iniciam-se com os pais ou aqueles que cuidam da criança em seus primeiros anos de vida e prosseguem com representantes destes, como professores, lideres religiosos, políticos, etc.

Nesses processos, ao mesmo tempo em que nos aproximamos do objeto ao qual nos identificamos também nos damos conta de nossas diferenças em relação a ele. Parece-me, no entanto, que temos reduzido ao máximo as situações em que essas diferenças possam se revelar.

Do mesmo modo, será que o fascínio pelos tutoriais – ensine-me como fazer – não restringe as possibilidades de experimentação e nelas o reconhecimento da singularidade de cada pessoa?

 Curiosamente, o que me instigou esses questionamentos, foi justamente o vídeo de uma youtuber que, a meu ver, tem optado por estimular e provocar o espirito crítico de seu público: Lorelay Fox.

 

“O Perigoso discruso de Lady Gaga no Oscar” – Lorelay Fox

Refiro-me, especialmente, ao vídeo no qual ela reflete sobre o discurso de Lady Gaga na ocasião em que recebeu o Oscar pela melhor canção original de 2019 (link no final do texto). Nesse discurso, a atriz fala sobre a importância de não desistir de seus sonhos, utilizando a já citada estratégia do como fazer: “trabalhe duro como eu e você conseguirá”.

Lorelay, ao invés de trazer certezas, levanta dúvidas e convida seus “seguidores” a refletir sobre as seguintes questões: será mesmo  a ideia de esforço suficiente para que os sonhos se realizem? O quanto de frustração pode gerar esta crença? Há garantias de que se consiga realizar um sonho? Porque me identifico com alguém posso ser como ele?

Ao advertir sobre os riscos de se colocar um sonho como única rota possível, ela pergunta se essa busca obstinada não pode impedir que se percebam outras possibilidades durante o percurso.

As reflexões e perguntas de Lorelay Fox nos remetem a uma questão primordial: o desejo. Nós humanos somos incompletos e, por isso, vivemos a desejar aquilo que nos falta. Isso nos move e porque não dizer, até nos mantem vivos. Por outro lado, depositar todas as nossas expectativas num sonho e crer que com ele preencheríamos de vez essa falta é certeza de frustração, no mínimo. 

Descobrirmos quem somos e o que realmente desejamos, provavelmente, exigirá de nós mais do que um tutorial de autoajuda pode oferecer.