Corpo e alma: os meandros do desejo

Corpo e alma: os meandros do desejo

Corpo e Alma

Os meandros do desejo

Dalvanira Lima, Psicanalista

04 de abril de 2018

 

À primeira vista, “Corpo e Alma” poderia ser mais um filme em que o argumento principal se baseia numa doença física ou psíquica, como tantos outros já vistos no cinema. Porém, ainda que várias características do comportamento da personagem principal, Mária (Alexandra Borbély), leve-nos a pensar que ela sofra de uma disfunção associada, talvez em algum grau, ao autismo, em nenhum momento isso se explicita; ou melhor, a construção da personagem não fica reduzida à nomenclatura de uma patologia.

No filme, Mária é admitida num abatedouro e indústria de carne bovina como controladora de qualidade. Vemos então que, embora tenha autonomia para morar sozinha e trabalhar, suas atitudes são calculadas, e os comportamentos nos parecem automatizados. Uma impressionante capacidade de memorização funciona como uma espécie de manual de instruções a que ela recorre para desempenhar as tarefas do dia a dia. É como se as experiências sensoriais não deixassem marcas e nem registro corporal, daí a necessidade de que absolutamente tudo ficasse gravado na memória.

Além disso, o que de imediato chama a atenção de seus colegas de trabalho é o fato de Mária não corresponder às tentativas de integrá-la ao grupo. Quando esse comportamento é relatado a Éndre (Géza Morcsányi), diretor financeiro da empresa, ele mesmo se empenhará em dela se aproximar, no início, sem sucesso.

No entanto, o obstáculo de comunicação entre os dois parece encontrar uma maneira de ser transposto quando a psicóloga da empresa, pensando tratar-se de uma brincadeira, coloca Mária e Éndre frente a frente para se explicarem porque contaram a ela o mesmo sonho quando perguntados, em suas respectivas entrevistas, o que haviam sonhado na noite anterior.

Cena do sonho

Ambos sonharam que dois cervos, macho e fêmea, procuravam por comida numa floresta e que seus focinhos se tocavam quando bebiam água num riacho. Curiosamente, ao contarem o sonho, eles não só descrevem a cena como Éndre se reconhece como sendo o cervo macho e Mária, por sua vez, a fêmea.

O Sonho, segundo Freud, em sua essência mais íntima, significa uma realização de desejo. Desse momento em diante, em sucessivos sonhos se dará a aproximação de Mária e Éndre, cabendo a cada um se haver com os percalços de decifrar o desejo que esses sonhos revelam. De fato, na sequência dos sonhos, a alternância na presença dos cervos, por vezes juntos, outras vezes apenas o macho ou a fêmea, representa as tentativas de aproximação, nem sempre bem-sucedidas, que se dão entre os dois, na vigília.

Se, por um lado, Mária se defronta com o novo, coisas as quais ela não consegue nomear, por outro, Éndre reencontra o desejo há muito entorpecido.

E se, inicialmente, nossa atenção se fixa no comportamento de Mária, no automatismo de suas ações, que, em alguns momentos, chega a provocar risos no cinema, com o desenrolar da história, também nos voltamos para Éndre, ao percebermos o quanto os dois se assemelham quando defrontados com o inusitado do amor e do desejo.  

 É interessante observar como o fato de Éndre não ter sensibilidade em um dos braços, membro que parece mais um apêndice, aproxima e o identifica com a falta de sensibilidade corporal de Mária. Trazer para o corpo o desejo que urge no inconsciente e se revela no sonho não será um desafio só de Mária.

Éndre (Géza Morcsányi) e Mária (Alexandra Borbély)

Pelo lado de Mária, essas tentativas serão marcadas pela busca de reconhecimento do próprio corpo. Mais uma vez, ela recorre ao manual de instruções e à concretude das experiências, lançando-se numa jornada pelos sentidos, como se pudesse encontrar um modo de usar para cada um deles. Contudo, ainda que permita à Mária decifrar até o significado de um olhar, esse manual não dirá a ela como se comportar diante do interesse que surge em relação a Éndre. E, na tentativa de descobrir, seguem-se cenas marcantes, como a do parque, em que Mária vai observar casais se beijando, ou quando vai a uma loja de disco e passa o dia inteiro ouvindo CDs sem se decidir por nenhum; acaba então levando um de músicas românticas que a vendedora lhe recomenda.

 Finalmente, depois de idas e vindas, o encontro de Mária com Éndre, ou melhor, a união de corpo e alma, acontece quando a palavra atravessa o corpo, na declaração que ele faz à amada: “Eu te amo tanto”, ao que ela responde: “Eu também te amo muito”.  

 Esse final me fez lembrar de uma passagem em que Lacan cita a frase de La Rochefoucauld: “Há pessoas que nunca se haveriam apaixonado, se nunca tivessem ouvido falar de amor”. Sobre isso, diz Lacan: “não no sentido romântico de uma ‘realização’ imaginária do amor, que fizesse disso uma amarga objeção a ele, mas como um reconhecimento autêntico do que o amor deve ao símbolo e que a fala comporta de amor”.

 Nesta perspectiva, podemos entender por que de nada adiantou para Mária ouvir de outras pessoas sobre o amor – isso equivaleria a procurar o significado num dicionário. Se o sonho estava marcado pelo simbólico quando Mária e Éndre se reconhecem nos cervos, é na assunção do amor e do que ele representa para cada um que o encontro acontece.

Corpo e Alma tem o mérito de reconhecer em Mária, que sonha, sua condição de sujeito desejante, e para o qual a subjetividade não pode se reduzir a regras adaptativas de adequação social. Na verdade, não pode e não deve se reduzir para nenhum de nós.

Corpo e Alma (Testről és lélekről, título original), Hungria, 2017, dirigido por Ildikó Enyedi.

O Caso Manson: o começo

O Caso Manson: o começo

O Caso Manson: o começo
A Infância de Manson
Gualberto Gouvêia, Psicanalista
20 de novembro 2017
Em 9 de agosto de 1969, à noite, um grupo de jovens de uma comunidade que adotavam um estilo livre de vida, invadiram a casa do cineasta Roman Polanski, em Los Angeles – EUA,  e mataram cinco pessoas com requintes de crueldade. O cineasta não estava, mas sua esposa, a atriz Sharon Tate, grávida de oito meses sim, bem como outros três convidados. O que se seguiu foi primeiro a morte de um garoto que havia ido visitar o caseiro. Em seguida mataram as visitas com tiros e facadas e, por último, colocaram uma corda em torno do pescoço de Sharon Tate e, enquanto ela clamava por sua vida e de seu bebê, Susan Atkins, chamada pelo grupo de Sadie Sexy, esfaqueava lentamente a atriz. No julgamento diria, entre cantos e risos, que quanto mais Sharon clamava por sua vida, mais ela experimentava um prazer indescritível culminando por gozar no momento em que experimentou o gosto do sangue misturado da atriz e seu bebê. Eles haviam anunciado a chegada ao grupo como sendo “o diabo” e que tinham vindo fazer o serviço do “diabo”. Escreveriam na parede coisas que pareciam desconexas como Helter Skelter e Pigs.

As investigações apontariam Charles Manson como o articular do crime. A partir daí ele seria chamado de “o maior criminoso da história”, “o número um no índice da maldade” entre outras designações. Bastante sensacionalista, mas pouco esclarecedor. A grande pergunta que se faria é: “o que teria levado aqueles jovens a praticar tal crime?”.

Manson, que havia passado a maior parte de sua vida em reformatórios e prisões, ao sair de uma delas, no final dos anos sessenta, encontraria um mundo em revolução. Os jovens haviam descoberto a pulsão de vida que neles habitava. Eric Fromm[1] os encantava com sua denúncia contra a dominação dos governos e da família, particularmente, do pai. Os conclamava a encontrarem um novo caminho harmonioso abandonando o consumismo capitalista e buscando a harmonia com a natureza. Dizia que as necessidades eram, quase todas, de origem psicológica enquanto Freud falava da libido e das pulsões, Fromm insistia na busca do amor como caminho para a felicidade. Outros autores como Herbert Marcuse, que também influenciou essa geração, afirmava sobre Freud, que ele sentenciava que o homem, para viver em sociedade, deveria se reprimir e trocar essa repressão pela sobrevivência. Ele, Marcuse[2], argumentava, no entanto, que a repressão era uma construção histórica e que a mesma poderia ser removida. Assim, o autor assinalava que havia uma “mais-repressão”, ditada pelos sistemas sociais e que seria o real causador da infelicidade humana. Marcuse pregava o fim do princípio da realidade e a importância do sexo na busca do prazer. Michael Foucault[3] também deixaria sua marca geracional com suas denúncias sobre a sociedade da vigilância e a necessidade de romper com essa dominação panóptica para que o ser humano fosse mais feliz.

Manson se confrontou com tudo aquilo que via e viu que gostava daquilo. Percebeu que havia muitos jovens desorientados em busca de um novo sentido para a vida. A Guerra do Vietnam, a Guerra Fria, eram pulsões de morte que deviam ser dominadas e excluídas naquele momento. O que importava era o prazer. Dotado de enorme capacidade de sobrevivência, aprendida nos anos em que viveu detido, ele percebeu que poderia criar sua própria comunidade livre em meio a tantas. Perspicaz e sedutor, logo intuía os potenciais membros para a “família” que pretendia formar. No caso das mulheres, deviam ter problemas de ajuste familiar e, preferencialmente, conflito com o pai. Quando percebia essas características em uma garota, logo a convidava para fazer sexo impondo uma condição: a garota deveria fazer sexo com ele pensando que o fazia com seu próprio pai. Da parte dos garotos, a conversa girava em torno da injustiça da guerra (Vietnã), a necessidade de um novo tempo de mais amor e, fundamentalmente, muito sexo sem nenhuma restrição e drogas à vontade, no caso, o LSD. Manson, que nunca havia tido uma família que o acolhesse, agora criava a sua própria. Seus membros se autodenominavam “Família Manson”. Megalomaníaco, procurou se aproximar de gente do mundo da música em troca dos favores sexuais dos membros de seu grupo. Conheceu produtores musicais e o baterista da banda Beach Boys[4], Denis Wilson, que ficou encantado pelo grupo a ponto de convencer o líder da banda, Brian Wilson a gravar uma música de Manson. Depois do crime, essa música seria retirada das cópias e se tornaria rara. Manson não ficou satisfeito com essa gravação. Achou que Brian havia modificado a essência de sua obra e procurou um produtor musical que também o recusou considerando sua música sofrível. Manson ficou furioso e tratou de armar sua vingança. Sempre havia tido o desejo de ser muito famoso, uma celebridade.  Enquanto suas chances musicais diminuíam, os Beatles lançavam aquele que ficou conhecido como “Álbum Branco”. Ao ouvir o disco, Manson criou a ideia de que aquele disco havia sido gravado para ele, um chamado dos Beatles para que ele, do outro lado do oceano, colocasse em prática o “Helter Skelter[5]”. A partir daí, Manson tentaria entrar em contato com os Beatles sem, no entanto, nunca ter obtido qualquer de sucesso. Criaria o então o seu próprio “Helter Skelter”.

Em sua psicose[6] dizia que os negros iriam começar uma grande revolução e derrotariam os brancos. Mas não teriam condições de governança e precisariam dele Manson e sua família para esse governo. Manson tratou de apressar as coisas cometendo os crimes e pensando que, com as marcas deixadas a sangue nas paredes, a culpa recairia sobre os negros e eles, revoltados, apressariam o confronto final[7]. Por conta disso, foram cometidos os crimes. A instrução de Manson: “- Cometam o crime mais horripilante possível”.

A princípio as suspeitas recaíram sobre o próprio marido, Roman Polanski, que havia filmado alguns anos antes “O Bebê de Rosemary”. Pelas características do filme e também em busca de sensacionalismo, atribuiu-se o crime a uma espécie de culto satânico. O filme, que falava do “ano um do demônio”, ou de uma era regida “pelo diabo”, seria explorada por meses pela imprensa antes de chegarem, quase que por acaso, aos autores dos assassinatos.

Situado o criminoso, o crime e a sociedade no tempo e no espaço, o propósito deste trabalho é procurar entender, dentro de limitações objetivas, a criança Manson e as circunstâncias que moldaram seu ego.

Sabemos das complexidades que envolvem as psicopatologias e as dificuldades em diagnosticá-las. No presente caso, na medida em que tomamos contato com suas particularidades essas dificuldades se tornam mais agudas e não tenho a pretensão de apresentar um diagnóstico conclusivo. O que será feito aqui será apenas um exercício que aponta, principalmente, para uma perversão sem, no entanto, fechar questão quanto a isso. Assim, concordamos com Forbes (2012) quando afirma:

“O psicanalista ou o médico que entende ter condições de objetivamente identificar e conhecer a psicopatologia tende a distinguir normal e patológico sob uma moral: se é bom é normal, sendo o patológico o mal a ser expurgado. Sua prática passa a ser corretiva e sujeita a seu próprio juízo. Torna-se totalitária, justamente porque está fechada”. (Pág. 53).

 

Charlie: de criança a adolescente[8]

A história de Charlie começa com sua avó. Nancy Maddox amava bíblia em sua fé fundamentalista e se sentia magnetizada pelas nefastas criaturas que, na Terra, realizavam o serviço do diabo. Quem a conheceu dizia que ela era tolerante com os outros e não parecia fanática. Na verdade, ela entendia que os outros eram problemas de Deus, a ela competia cuidar dos seus. Seu marido, Charlie Milles Maddox, se submetia totalmente à mulher o que, naqueles tempos, não era propriamente comum. Sempre amuado e impotente em sair de seu estado de submissão, depois de quatro filhos, Charlie Milles vem a falecer em virtude de uma tuberculose. O mundo de Nancy, que parecia harmonioso começa a ruir. Outro filho falece de pneumonia e a filha mais velha se separa do marido. Ela sente que Deus a está testando. Refugia-se ainda mais na Bíblia e tenta nela encontrar as respostas para sua sorte. Sua filha mais nova, Kathleen, adorava dançar para horror de sua mãe. Entre idas e vinda, fugas e advertências dos perigos do mundo, a jovem fica gravida de um homem mais velho que havia escondido que era casado e não assume o relacionamento. Nancy não renega a filha, mas a força a submeter-se aos valores cristãos que ela própria acreditava fazendo Kathleen prometer que a criança cresceria como temente a Deus.

Kathleen não demora em romper o trato e, tão logo tem o bebê, o deixa com sua mãe para novamente frequentar as boates que sua mãe tanto temia. Logo conhece outro homem com quem se casa. A avó assume a criança prometendo criá-lo na fé bíblica.

A quase adolescente Kathleen parecia repetir sua vocação em encontrar homens inadequados e, após algumas surras, separa-se do marido, Willian Manson, que havia dado seu sobrenome ao bebê e novamente procura frequentar as boates noturnas. Nesse período, contrata algumas babás que levavam os namorados para a casa e, enquanto o bebê estava no berço, faziam sexo diante dele. Tal fato não parecia incomodar a Kathleen, pois, ela mesma, adotava tal prática.

Charles Manson, doravante chamado de Charlie, viveu seus primeiros cinco anos de vida entre casas de parentes, incluindo sua avó, e de sua mãe.

Pensando em melhorar de vida, Kathleen e seu irmão mais velho planejam um assalto e não se dão bem. Charlie vê sua mãe ser presa e algemada. Ele, que não havia tido a presença paterna, agora, ficava sem a mãe que nunca fora muito presente. São condenados, o irmão a dez e ela a cinco anos de prisão. Em virtude dessa prisão e pensando em deixar a criança mais próxima da mãe, Charlie é encaminhado a morar com sua tia – que tinha uma filha, Jô Ann. Ela havia se casado novamente morava próxima da penitenciária.

Melanie Klein afirma que “encontramos no adulto todos os estágios do seu desenvolvimento na primeira infância[9]”. Afirma a autora, que estão no inconsciente todas as fantasias recalcadas que serão controladas pelo superego. Para ela, os recalques profundos se dirigem contra as tendências mais antissociais.  Penso que aqui podemos fazer uma intersecção com o postulado por Stoller[10] ao assegurar que a perversão é uma fantasia posta em ato por meio de uma estrutura defensiva construída ao longo dos anos.

Charlie, até os cinco anos não havia convivido com nenhuma figura paterna. Suas fantasias edipianas foram incompletas. Klein[11] ressalta a importância edípica no desenvolvimento da personalidade, tanto das pessoas normais quanto das neuróticas. É de se imaginar o efeito que deve ter tido na criança a visão de vários homens diferentes sobre sua mãe que lhe negligenciava e nem de perto era a “suficientemente boa” de Winnicot.

Charlie era uma criança desagradável que ninguém queria por perto. De estatura abaixo da média para sua idade, era mirrado, mas, talvez para compensar sua fragilidade, gostava de contar lorotas e tinha rompantes de raiva quebrando coisas às escondidas e não assumindo a culpa. Era obcecado por ser o centro das atenções. Se não conseguia ser notado por fazer algo certo, comportava-se mal estando sempre disposto a isso. Seus parentes e amigos diziam que ninguém ficava relaxado quando Charlie estava por perto.

Charlie é levado a estudar na sala de uma professora que seria lembrada por sua crueldade. Dispunha os alunos segundo sua preferência. Os mais queridos na primeira fileira e os mais odiados, na última. Charlie foi apresentado por ela a seus novos colegas de classe como sendo uma criança terrível e que tinha uma mãe presa. A professora era conhecida, em um tempo em que bater era permitido, por ter palavras mais cortantes e impactantes do que qualquer surra possível. Ao final do primeiro dia Charlie, que nunca chorava, mesmo quando apanhava de sua mãe ou de sua avó, chorou copiosamente ao chegar da escola. Seu tio disse a ele que chorar era coisa de menina e, no dia seguinte, ao ir à aula, o fez vestir uma camisola de sua prima, bem maior que ele e ir à escola com aquela roupa. Charlie nunca esqueceria esse fato e sua prima diria o quanto ele ficou desesperado nesse dia.

Podemos imaginar o ódio que sentiu a criança, que gostava de ser o centro das atenções, de sê-lo por esse motivo, Foi objeto de escárnio por parte da professora e dos colegas de classe. Ao se recusar a voltar à escola no dia seguinte, foi surrado pelo tio. Segundo Stoller[12], o ódio sustenta a formação perversa e ódio não faltava ao pequeno Charlie. O momento de Charlie é, de acordo com Klein[13], exatamente aquele em que o menino está buscando a fixação com o pai. Neste caso, ele não existe e nem sequer a mãe. Assim, ainda de acordo com a autora forma-se a base de uma personalidade antissocial uma vez que essa relação será fundamental para todas as demais relações na vida.

O afastamento do objeto amado, no caso, a mãe, se deu de maneira absolutamente concreta. Ela estava presa. Seu pai, por sua vez, o havia renegado e o amor, o afeto que poderia sentir vai se transformando em aversão.

Charlie poderia, em sua fantasia, preparar o tio, a professora, a mãe e tantos outros que ele odiava, em um banquete a ser servido a ele mesmo.  Charlie não demonstrava nenhum arrependimento por seus atos, os quais ele não assumia. Sua capacidade de amar parecia inexistente e não fazia por onde se sentir necessário ou amado.

Quando havia uma confusão entre Charlie e a prima Jô Ann, a razão era sempre dada à menina, muito por conta dos antecedentes de Charlie, Com o tempo ele constataria que certo ou errado, ele sempre seria o errado e então, não se preocuparia mais em fazer o certo. Foi por essa época que sua prima afirma que Charlie começou a se interessar pelo manejo de facas a ponto desse se tornar seu principal interesse. Certa vez ele chegou a ameaçá-la com uma espécie de foice.

O convívio com seus tios, avó e mesmo a mãe com seus diversos parceiros,  fez Charlie acreditar mais tarde que, para uma criança, o melhor seria ser criada longe dos pais. Diria ele que uma criança nasce livre e assim deveria permanecer para poder se desenvolver sem restrições.

Kathleen sai da prisão e passa algumas semanas com o filho. Estes seriam, no dizer de Charlie, os melhores dias de sua vida. A esse respeito recorremos a Stoller[14] quando enfatiza a relação primária com a mãe e não a escolha objetal primária. Para ele, a afirmação da masculinidade demandaria um esforço adicional para a separação e desidentificação com a mãe.  O garoto não tinha, porém, outra pessoa que não fosse a própria mãe que não tardou a perceber que ele gostava de manipular as pessoas e só se interessava por quem podia lhe ser útil. Essa aproximação não duraria muito.

A mãe de Charlie ainda se sentia atraída por bebida e dança e, por algum tempo, se prostituiu. Foi nesse mundo que conheceu um novo companheiro que, alcoólatra e sem trabalho, foi levado para sua casa, imediatamente demonstrando pouca tolerância com seu filho.

Charlie fugia da escola, mentia e praticava pequenos furtos com oito anos. Ele achava que tudo o que queria deveria ser seu.  Kathleen então o coloca em uma escola interna que aceitasse alunos problemáticos. Os padres que dirigiam essa escola costumavam bater nos alunos com um bastão de um metro de comprimento. Charlie conheceria o peso desse bastão muitas vezes.

Com treze anos pratica seu primeiro assalto a mão armada e vai para a “cidade dos garotos”, local para jovens infratores onde os adultos podiam disciplinar os jovens à vontade. Era liberado para os mais velhos brutalizarem os mais novos física e sexualmente. Lá, Charlie foi estuprado tantas vezes que, sessenta anos mais tarde diria que não vinha nenhum problema no estupro. Era só se limpar e seguir adiante.

Aqui temos um momento traumático em que a identidade de gênero é brutalmente atingida. De acordo com Stoller[15], nestes casos o sujeito tenta reorganizar sua vida psíquica a partir da negação de seus efeitos. Procurará reencenar sua vida sexual tal qual em um teatro procurando afirmar a vitória sobre o agressor e a reversão dos papéis tentando, desta forma, uma exemplar vingança. Charlie não perderia a oportunidade.

Ferraz[16] assinala que a perversão na obra de Freud possui três momentos, sendo o primeiro, em “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905)” quando sublinha a neurose como o negativo da perversão. O segundo momento se dá em “Uma criança é espancada (1919)” quando afirma a teoria do complexo de Édipo e, finalmente, em “Fetichismo (1927)” quando a associa à clivagem do ego.

Esse talvez seja uma possibilidade no caso de Charlie. Foi preciso cindir seu ego para sobreviver. Uma parte de seu ser deveria negar o que lhe acontecia para que pudesse seguir adiante.

Com o tempo, foi criando a estratégia de demonstrar insanidade para afastar o abusador, o que nem sempre dava certo mas serviu como treinamento para suas façanhas posteriores, inclusive em seu julgamento no caso Sharon Tate.

Nesse reformatório, Charlie foi avaliado como tendo um terrível senso de inferioridade, mas que ainda era sensível e disposto a amar o mundo. Ele havia manipulado seu avaliador. Manipulação e estratégias para obter o que queria, faziam parte da vida de Charlie.

É pego sodomizando um garoto com uma faca em sua garganta, o que, na época, era um crime só abaixo do assassinato. É mandado, com dezessete anos para outro reformatório onde se envolve em outras indisciplinas, sendo três delas atos homossexuais. Sua peregrinação por reformatórios – entre os mais terríveis dos EUA –  continua até que os avaliadores dissessem que ele estava além de qualquer reabilitação.

Charlie é libertado com vinte e um anos e vai tentar morar com sua mãe que o rejeita. Passa então a maior parte do tempo com sua avó que ainda pensava em fazer dele um religioso. Sua avó o obrigava a assistir aos cultos dominicais como contrapartida do abrigo fornecido. Nos cultos, Charlie ouvia os sermões dos pastores que diziam que a mulher deveria ser subserviente ao homem, abandonar a individualidade, esvaziar-se totalmente para se entregar a Deus. Ouvia sobre o livro do Apocalipse que falava sobre o “poço sem fundo”. Ele não esqueceria esses sermões e os usaria para angariar adeptos e formar a narrativa que convenceria sua “família” futura.

Em mais uma tentativa de aceitação social, consegue ser convidado para uma festa de “dia das bruxas”, no entanto, é totalmente ignorado pelos demais participantes, mesmo tendo se dedicado na obtenção de uma fantasia adequada. Esse é um episódio de sua história que o deixou muito abalado. Depois disso, passa a ser ignorado por todos, na rua, no mercado, em qualquer lugar. Era o excluído.

Apesar de suas experiências homossexuais, Charlie era mais atraído por mulheres e, mesmo contra todas as expectativas, consegue se casar e tem um filho. Por um breve espaço de tempo, tenta seguir uma vida normal mas seu impulso por uma vida abastada o leva a roubar carros seguidamente até ser preso.

Maior de idade, agora vai para uma prisão de adultos e lá aprenderá com os mais velhos como submeter as mulheres à sua vontade: deveria escolher as corretas, aquelas com problemas paternos, de baixa autoestima cairiam mais facilmente. Seria fundamental separá-las dos amigos e da família e combinar carinho com espancamentos para que se lembrassem de “quem mandava”.

Charlie ficará na prisão até os trinta e dois anos, quando ganha a liberdade. Nessa ocasião, pede para continuar preso, pois se sentia deslocado fora da prisão. Ele dizia que a cadeia era o seu verdadeiro mundo, onde ele tinha mais tranquilidade. Ninguém o ouviu.

E Continua…

Ferraz[17] salienta que “a formação de uma perversão resultaria de uma fixação infantil num estágio pré-genital da organização libidinal”. Em Charlie, a experiência aglutinadora que poderia resultar em uma sexualidade normal foi interrompida. Nem na infância, nem na adolescência, ele teve oportunidade de experimentar uma evolução psíquica adequada.

Em Charlie podemos tentar encontrar a divisão do ego. Ele viu diversos homens possuindo sua mãe. Presenciou isso. Acompanhou seus gemidos nos primeiros anos de vida. Esses homens deveriam ser altamente ameaçadores a ele, no entanto, nenhum permanecia. Poderia ser, em sua mente, um momento de afirmação de sua condição de menino. Enquanto seu desejo o impelia à mãe, a realidade expulsava esse desejo e o reprimia.

O perverso procurará criar um cenário em que sua castração seja negada. Charlie foi negado por todos, estuprado continuadamente. Depois de preso, abandona a mulher e seu filho e procurará criar um mundo particular, mas, ao mesmo tempo, negará esse mundo projetando-lhe um final apocalíptico. Charlie usará as pessoas como “palitos de fósforos que se queimam” [18].

Melanie Klein[19] assegura que as crianças podem demonstrar tendências criminosas e estas são as que, costumeiramente, mais fantasiam a agressividade de seus pais. No caso de Charlie, ainda que sua mãe não o agredisse fisicamente com constância, seus parentes o faziam e a própria mãe, ao recusar seu filho, fosse por imaturidade, fosse pela inadequação ao papel de mãe, marcou em Charlie a ofensa, a falta de afeto positivo.

Charlie cresceu em um ambiente onde seu superego foi sendo enfraquecido. No lugar, cresceu o sadismo, a angústia e o círculo vicioso entre o ódio e a ansiedade, no dizer de Klein[20], tendências destrutivas que não se rompem se o indivíduo continua sob a tensão das primeiras situações de aflição.

A formação (ou deformação) de Charlie se deu de modo linear. Ao tomarmos conhecimento de sua história, parece que um enredo se delineava com um final programado, no entanto, quantas crianças tiveram formação semelhante, passaram por momentos difíceis e não tiveram o mesmo destino? Quais são as condicionantes sociais e singulares que determinam o caminho que será seguido?

Perguntas…

[1] Entre seus vários livros, destacamos “Psicanálise da Sociedade Contemporânea” e “Ter ou Ser?”, todos editados pela Zahar.

[2] Dele, destacamos “Eros e Civilização”, ed. Gen e “O Homem Unidimensional”, Zahar.

[3] Vigiar e Punir, Ed. Vozes.

[4] À época, a banda disputava com os Beatles a supremacia pelos discos de rock mais emblemáticos. “Pet Souds”, desse período é, até hoje, saudado como o segundo mais revolucionário de todos os tempos, só superado por “Sargent Pepers” dos Beatles.

[5] Nome de uma das faixas do disco.

[6] Impossível não lembrar do caso Schereber e sua própria concepção de mundo.

[7] Importante lembrar que nessa época, os conflitos raciais nos EUA estavam no seu auge, com Martin Luther King tendo sido assassinado um ano antes e em plena efervescência dos “Panteras Negras”, grupo nada pacifista que pregava o confronto armado.

[8] A base para a construção do perfil de Charlie criança será o livro de Jeff Guinn, Manson – A Biografia, Rio de Janeiro, Ed. Darkside, 2014.

[9] KLEIN, Melanie.  Tendências Criminais em Crianças Normais in Contribuições à Psicanálise, São Paulo, Ed. Mestre Jou, 1970. Pag. 233.

[10] STOLLER, Robert. Perversão – A Forma Erótica do Ódio, São Paulo, Ed. Hedra, 2015.

[11] Op.cit.

[12] Op. Cit.

[13] Op. Cit.

[14] Op. Cit.

[15] Ibid.

[16] Ferraz, Flávio Carvalho. Perversão. São Paulo, Casa do Psicólogo, 2015.

[17] Ibid. pag. 32.

[18] Expressão retirada do livro de Ferraz, Op. Cit.

[19] Klein, Melanie. Sobre a Criminalidade in Contribuições à Psicanálise, São Paulo, Ed. Mestre Jou, 1970.

[20] Ibid.

O pequeno Charlie
* Texto originalmente apresentado como conclusão de ciclo para formação psicanalítica no Centro de Estudos Psicanalíticos.

Colégio Goyases e Columbine: a busca por respostas

Colégio Goyases e Columbine: a busca por respostas

Colégio Goyases e Columbine
A busca por respostas
Dalvanira Lima, Psicanalista
29 de outubro de 2017
Mais uma vez a perplexidade toma conta da opinião pública diante de um caso de violência como o que aconteceu recentemente numa escola de ensino fundamental em Goiás. Um garoto de 14 anos, armado com uma pistola .40, tirou a vida de dois colegas de classe e feriu mais quatro.
Como sempre acontece em casos similares, fervilham as buscas de razões que, de alguma forma, expliquem o que levaria uma pessoa, no caso um adolescente, a cometer um ato de tal magnitude. No rol dessas justificativas sempre está a responsabilização dos pais por não terem propiciado ao filho o suporte emocional necessário para que ele pudesse lidar com os desafios inerentes ao convício social. Nesse caso não foi diferente.

Quando li nos jornais uma declaração nesse sentido, de imediato, lembrei-me do livro “O acerto de contas de uma mãe”, de Sue Klebold, mãe de Dylan Klebold, um dos dois garotos que participaram do tiroteio na Escola de Ensino Médio de Columbine, nos EUA, em abril de 1999. Armados com pistolas e explosivos mataram doze alunos, um professor e deixaram vinte quatro alunos feridos para, em seguida, suicidaram-se.

 

Dylan Klebold e Eric Harris
O livro, publicado em 2016, traz o relato de uma mãe que não ficou um único dia, após aquela tragédia, sem se perguntar “Por que meu filho cometeu esse ato e o que poderíamos ter feito para impedi-lo?”.

A busca dessas respostas norteia a narrativa do livro e funciona como a montagem de um quebra cabeças que, se de um lado, oferece uma melhor compreensão do caso; por outro, reúne os cacos de uma mulher despedaçada pela tragédia.

Na medida em que se avança na leitura, também somos levados a procurar as razões que levaram Dylan aquele desfecho trágico. O que ocorre, no entanto, é que a cada página, nos deparamos com a sensação de que, isoladas ou mesmo em conjunto, as razões parecem insuficientes para justificar seu ato.

Ainda que Sue Klebold não faça dessa narrativa um álibi para fugir da responsabilidade de mãe, seu livro nos leva a refletir sobre o grau de liberdade que tem um indivíduo na constituição de sua subjetividade a partir do que lhe é oferecido no ambiente familiar.

O relato e a pesquisa minuciosa realizada por Sue ao longo de dezesseis anos até a publicação do livro, nos convida a sermos mais cautelosos quanto às explicações simplificadoras a respeito de casos como este, ainda que venham dos chamados “especialistas” e, principalmente, quando as justificativas visam apontar culpados.

Sue Klebold. O acerto de contas de uma mãe – A vida após a tragédia de Columbine. Tradução: Ana Paula Doherty. Editora Versus, 2016.

A Acústica do recordar

A Acústica do recordar

A Acústica do recordar.
Tempo de escutar, tempo de lembrar.
Nadia Jorge Berriel, Psicanalista
24 de outubro de 2017
Em Minnesota, nos Estados Unidos, foi construída uma sala que bloqueia 99% dos barulhos externos, lugar que ficou conhecido como o “mais silencioso do mundo”. Os pesquisadores que desenvolveram essa sala anecóica dizem que quase ninguém é capaz de permanecer no local por mais do que 45 minutos, pois o silêncio pode induzir alucinações e causar mal-estar. Num ponto estratégico da sala, onde há o maior grau de silêncio, foram reportados casos de desmaios e, portanto, recomenda-se que o visitante não fique em pé no local, e que não se demore por lá. Quando os sons de fora são calados, resta-nos apenas o barulho de nosso corpo e mente, e isso, aparentemente, é intolerável.
Para além das explicações neurológicas, como, por exemplo, de que ao eliminar os sons de um lugar, nossos ouvidos tão habituados ao barulho fazem o possível para encontrar novos sons, eventualmente produzindo alucinações sonoras, o que haveria de tão insuportável em nos encontrarmos a sós com nossas estrondosas pulsações e pulsões?

Nesta época de smartphones e aparelhos tecnológicos que roubam nossa atenção constantemente através de seus bips, vibrações, apitos e luzes, é comum escutarmos casos de pessoas que deixam de prestar atenção aos sinais do corpo, como o cansaço ou a vontade de ir ao banheiro, pois estavam envolvidas em conversas nas redes sociais. Quando tentamos nos desvencilhar dos aparelhos, um aviso sonoro nos lembra de que uma nova mensagem foi recebida ou que um amigo deu like no último post. Usamos tais distrações externas, visuais e sonoras como via de escape da angústia que sentimos, e que tentamos calar e esquecer.

Habituados a essa toada escapista da vida cotidiana, pode ser espantoso deparar-se com indivíduos que parecem caminhar em silencioso descompasso com o agito contemporâneo, absortos na lembrança de um acontecimento traumático, incapazes de evadir desses sentimentos de angústia e desamparo.

Entretanto, relatos clínicos de trabalhadores de saúde mental nos centros de acolhimento a refugiados e migrantes da cidade de São Paulo nos apresentam numerosos casos de pessoas em desarmonia com relação ao alucinante ritmo de vida nas grandes cidades do país. Não há rede social digital que aplaque a necessidade de contato humano e que supra a falta que fazem os familiares e amigos perdidos na fuga, nos conflitos civis ou em desastres naturais.

O fato é que todo deslocamento geofísico abrupto acarreta alguma fratura interna; a estabilidade das representações internas que criamos a partir da realidade externa requer constantes direcionamentos provindos do “lado de fora”. Se a perturbação dessa estabilidade é corporalmente percebida após poucos minutos dentro da câmara silenciosa de Minnesota, qual o impacto do exílio nos corpos e mentes dos refugiados?

Talvez por medo de que o barulho familiar silencie para sempre, subjetivamente, a terra onde o exilado residia passa a habitar dentro dele e continua ali muito tempo depois da partida. Embora um permanente senso de si possa prevalecer, e muitos aspectos do sujeito sigam adiante enfrentando o que há de novo, pontuando e enriquecendo novas possibilidades, algo vital é, inevitavelmente, deixado para trás, perdido, encapsulado no complexo e multifacetado mundo no qual o sujeito cresceu.

O deslocamento como metáfora de uma fratura da humanidade.
A perda de uma casa ou mesmo de objetos menores, mas de grande significado afetivo, como uma colcha de retalhos feita pela avó, pode ser causa de tremendo desconforto e insegurança para quem vive o desterro. Já a perda de elementos direcionados para o próprio ego do sujeito, como referências familiares, função social e identidade de grupo, pode ser ainda mais grave, a ponto de causar uma incoerência narcísica. O sujeito, então, perde contato consigo mesmo, com o ideal do eu, ou seja, com aquela perfeição imaginária que almejamos alcançar e que nos serve de parâmetro moral ao longo da vida.

Sujeitos que fugiram de guerras civis ou conflitos insuportáveis em suas terras natais, são confrontados com a face ameaçadora do Outro, alteridade por vezes aniquiladora, que determina quais corpos são “matáveis” ou Homo Saccer, para usar a expressão de Agamben, e nesses sujeitos verifica-se uma perda do laço identificatório com o semelhante, um abalo narcísico que os lança à angústia e ao desamparo, impedindo-os de elaborar ou simbolizar os eventos traumáticos sofridos. Esses indivíduos encontram-se, então, fixados no trauma, impedidos de esquecer, de recalcar o ocorrido, ação necessária para distanciar-se do acontecimento.

A distração do zum-zum cotidiano que nos oferece descanso das lembranças e pensamentos mais aflitivos é emudecida, e o sujeito pode eventualmente encontrar-se incapaz de se relacionar com o entorno nessa estranha terra de chegada.

Embora muitos refugiados e migrantes encontrem variadas soluções pra a construção de novos laços sociais, como a maternidade/paternidade de um filho nascido na terra de chegada, o casamento com um cidadão local, emprego novo, estudos, dentre outras resoluções, algumas pessoas são tomadas por uma aflição e angústia avassaladoras, e frequentemente essa angústia é relacionada à culpa.

Em Os Submersos e os Salvos, Primo Levi escreve sobre o estereótipo consagrado pela literatura da “calmaria depois da tempestade”: depois da doença vem a saúde, após a prisão vem a liberdade, após a guerra o soldado encontra o lar, a família e a paz. Levi relata, baseado na experiência em campos de concentração nazistas, que na maioria das vezes, o momento de libertação não é tranquilo nem feliz: a sensação, para o autor, era de que soasse, sob um fundo trágico de destruição, o massacre e o sofrimento. Naquele momento em que os prisioneiros dos campos sentiam que voltavam a ser humanos, portanto responsáveis, retornavam os sofrimentos da humanidade: a dor da família dispersa ou perdida, a dor universal em torno de si, a própria extenuação, o sofrimento da vida que deviam recomeçar em meio aos destroços, e, frequentemente, sozinhos.

Além das dores e humilhações às quais os refugiados asilados no Brasil foram submetidos em suas terras natais, e que por conta da xenofobia e das condições sociais precárias continuam a ser expostos também aqui, surgem questões sobre a própria ética e a culpa pelo o destino de seus familiares perdidos, com a dúvida, nem sempre vivida conscientemente: é possível sobreviver enquanto os outros morreram?

Crises de angústia e desejo de morte são recorrentes em relatos de profissionais de saúde mental que acompanham esses indivíduos, demandando intervenções urgentes para tais casos. Busca-se ajudar o sujeito a se relançar em sua trajetória e história individual e coletiva.
É nesse ponto que a clínica psicanalítica pode agir mais efetivamente, apresentando o suporte necessário para que o indivíduo exilado consiga, num ambiente de acolhimento, reinventar-se a partir da junção de suas memórias com a realidade externa e estrangeira do momento presente.
Em tempos de comunicação virtual e tweets com 140 caracteres, o campo psicanalítico parece muito favorável ao silêncio e a vagarosidade que a elaboração e a narração de histórias íntimas demandam. A consideração da realidade psíquica como algo tão ou mais importante do que a realidade externa para o setting analítico também confluem perfeitamente com a narração oral. Uma escuta livre de julgamentos e que não demande um discurso claro e objetivo é necessária para possibilitar o aflorar de uma rememoração com lapsos, solavancos, recalques e incompletudes inerentes a um conteúdo que ainda não teve condições de ser lembrado nem posto em palavras.

Em O Narrador, Walter Benjamin aponta que na era da informação, os acontecimentos só tem valor no momento em que são novos. Oras, para um sujeito em exílio, como poderiam sua fuga, e as perdas sofridas, ter valor efêmero? A clínica psicanalítica nos revela que qualquer evento traumático para o sujeito promove repetições até que o acontecimento seja suficientemente elaborado.

Para Benjamin, o relato do passado transforma-se no “grande símbolo de esperança do narrador: de que a vida não tenha sido vivida em vão e que seu sentido – tardio, mas cuja ressignificação liberta quem viveu os acontecimentos – sirva para outrem”.

Essa seria a função precípua do ato de narrar. De fato, em muitos relatos de sessões psicanalíticas com refugiados, ouve-se de indivíduos que até então estavam tomados pela pulsão de morte, que eles não podem morrer, pois precisam passar adiante a história de suas terras, de suas famílias. Precisam manter viva a memória de seu povo através da narração, do compartilhar das experiências vividas.

Os relatos das lembranças dos refugiados correspondem a um forte sentido para a vida de quem efabula, e no momento da enunciação tem a potencialidade de colocar o enunciador como sujeito central em sua história, o que contribui para um deslocamento da situação de vítima de um destino cruel e aniquilador, para o lugar de sujeito dono de desejos, sonhos e de sua própria história.

Dante escreveu na Divina Comédia que “não há dor maior do que a de nos recordarmos dos dias felizes quando estamos na miséria”, todavia o seu oposto também é verdadeiro, pois narrar a miséria sofrida quando nos encontramos a salvo traz alívio e contribui para o processo de elaboração e ressignificação dos males vividos.

Quando Primo Levi estava preso no campo de concentração, teve repetidas vezes um sonho, que era sonhado similarmente por vários de seus companheiros: sonhava que retornava para casa, e que com intensa felicidade e alívio podia finalmente contar aos parentes e amigos o horror já passado e ainda vivido e, de repente, percebe que ninguém o escuta, e que os ouvintes se levantam e vão embora, indiferentes. Não sejamos esses personagens que não escutam, que são indiferentes ao que é humano!

Para o ouvinte dessas narrações, cabe reconhecer a posição difícil, mas privilegiada de testemunha da história, a quem a escuta acolhedora é retribuída com o compartilhamento da cultura e da história de outras terras.

Publicado anteriormente na Revista Deriva.

20 e Poucos Anos

20 e Poucos Anos

20 e Poucos Anos

Uma canção atemporal

Gualberto Gouvêia, Psicanalista

06 de outubro de 2017

Em 1979, quando esta música foi lançada como tema da novela Água Viva da Rede Globo, o Brasil ainda vivia sob a censura da ditadura militar, esta já um tanto enfraquecida. Os ventos da redemocratização traziam sonhos, utopias e uma grande vontade de viver tudo aquilo que havia sido negado.

Foi nesse clima que Fábio Júnior compôs “20 e Poucos Anos”. Àquela época ele estava casado com Teresa e, já um tanto desanimado com a rotina do casamento, ele, que diz se expressar melhor pela música do que numa “DR”, pegou o violão e “cantou” para ela o recado que queria transmitir.

O tempo passou, aquela ditadura acabou, o consumismo se instalou como nova forma de ditadura, mas essa canção permanece viva e atual. Recentemente foi regravada pelos Raimundos e se tornou novamente um fenômeno. Nos shows desse grupo de rock o público vai ao delírio quando a canta. É como se a juventude quisesse dizer para o mundo: “nós ainda queremos viver muito mais além do que vocês imaginam”.

Esse sentimento é atemporal. Freud nos fala das pulsões, que não se confundem com os instintos. Enquanto o instinto tem um objeto de satisfação definido, na pulsão esse objeto é indeterminado e alguma coisa trabalha para que não haja uma satisfação plena. Assim, sobrevém a falta que nunca será suficientemente satisfeita, mas ela fica cravada na carne, lembrando que as utopias, estão bem vivas aos 20 e poucos anos e além. Ainda bem.

Feliz de quem passa muito além dos 20 anos e ainda possui planos, utopias, que não desiste dos sonhos demonstrando poder de resistência nestes tempos difíceis que vivemos, pagando o preço para viver plenamente e, dessa forma, dizendo sim à vida.