Sobre minha filha

Sobre minha filha

Sobre minha filha 

Livro fala dos conflitos de uma mãe

Dalvanira Lima, Psicanalista

09 de agosto de 2023

 

Logo no título, “Sobre minha filha”, romance da escritora coreana Kim Hye-jin, remete-nos a uma premissa da psicanálise de que os analistas comumente estão advertidos: quando o analisante fala do outro, diz mais sobre si.

No caso do livro, é sobre a mãe na figura de narradora que vamos conhecendo os conflitos de uma mulher de sessenta e dois anos diante das transformações de seu tempo. 

Isso se reflete na frustação de suas expectativas em relação ao futuro da filha, Green, para quem esperava estabilidade financeira, garantida pela formação universitária e uma família nos moldes tradicionais. Nenhuma coisa e nem outra acontecem, Green é lésbica e dá aulas em várias universidades como temporária com uma remuneração que em dado momento é insuficiente para arcar com o aluguel do apartamento em que morava com Rain, sua companheira. A mãe, mesmo contrariada, se vê obrigada a aceitar que ambas venham morar com ela. 

Com a suposta impossibilidade do almejado futuro para a filha vem também a de um envelhecimento tranquilo para si. Seu trabalho como cuidadora numa clínica para idosos a coloca frente ao tratamento desumano destinado a essas pessoas.

Foto: Shawnanggg na Unsplash

“Percebo que o melhor da minha vida se foi. Esse local onde me encontro, esse tempo que vivo e essas coisas que vejo – tudo isso me lembra os bons momentos que nunca mais voltarão.”

Por meio da relação mãe – filha, Kim Hye-Jin nos coloca diante da abrangência de temas contemporâneos como envelhecimento, precariedade do mundo do trabalho e diversidade sexual, de tal forma que surpreende o quanto estamos vivendo um desbotamento das particularidades socioculturais de países ou regiões. Não fossem a denominação de alguns pratos da culinária coreana e dos nomes de alguns personagens, o cenário onde se passa a história poderia ser qualquer centro urbano do mundo. Vale dizer que mesmo para a nomeação dos personagens, a autora escolhe nomes coreanos para os mais velhos, enquanto para a nova geração, a filha e sua companheira, nomes em inglês, Green e Rain.

Tendo essas questões como pano de fundo o que sobressaem são as contradições vivenciadas pela mãe. Ao mesmo tempo em que se empenha em mitigar os maus tratos e o descaso sofridos pela idosa que está aos seus cuidados na inescrupulosa casa de repouso, destrata Rain, que considera culpada pela homossexualidade de Green. Surpreende-se, inclusive, ao se perceber identificada aos agressores da filha num ato contra homossexuais.

Mais do que a resolução desses dilemas, o livro aponta para uma implicação da personagem nas questões que a afetam sem perder de vista os determinantes culturais de sua formação. Entre a alienação absoluta ao passado e a impotência diante da incerteza do futuro, ela opta pela potência no fazer o presente.

Kim Hye-jin. Sobre minha filha. Tradução: Hyo Jeong Sung. Editora Fósforo, 2022.

Perversão social na segregação do idoso

Perversão social na segregação do idoso

Perversão social na segregação do idoso 

Dalvanira Lima, Psicanalista

05 de janeiro de 2023

 

O envelhecimento é considerado um tema chave para o mundo contemporâneo. Desde o campo da cultura até os âmbitos político e jurídico, o aumento da expectativa de vida nos tem chamado a confrontar uma série de desafios acerca do lugar do idoso na sociedade, bem como a reconhecer uma espécie de ressentimento em relação a este grupo social.

Nas discussões em torno da reforma da previdência de 2019, dentre suas justificativas, nada teve mais ênfase do que o aumento da expectativa de vida do brasileiro. Viver mais se tornou efeito colateral daquilo que deveria ser uma fruição do progresso do conhecimento humano, notadamente no campo da medicina.

Em consonância com esta perspectiva, no início da pandemia, a maior incidência da Covid-19 entre idosos soou como justificativa para alguns que preferiram negar ou omitir-se diante da gravidade da situação. Afinal, a letalidade é maior dentre aqueles que, supostamente, já teriam vivido o bastante.

Seguindo essa lógica, o médico Nelson Teich, antes de ocupar o cargo de ministro da saúde no governo Bolsonaro, declarou num congresso que, diante da escassez de recursos, privilegiaria a vida de um adolescente a de um idoso. 

Recentemente, me causou perplexidade o comentário de um jovem no Facebook para justificar a expulsão dos aposentados de seu sindicato, em que ele dizia: “Isso perdurará enquanto mantivermos amarrado em nosso pé esse imenso peso morto que são os aposentados. Graças a eles morreremos afogados. Ou fazemos algo ou é isso”.

Em “O mal-estar na civilização”, Freud (2010) apresenta, dentre as três maiores causas do sofrimento humano, a condição do corpo fadado ao declínio e à dissolução. Isso pode nos dar uma dimensão do desafio que é lidar com o envelhecimento e, por conseguinte, a finitude. Não somente para quem envelhece, mas também para aquele que, mesmo jovem, tem diante de si esta inexorável expectativa.

A condição do idoso na sociedade contemporânea nos lembra da “obsolescência programada” proposta por Bernard London em um panfleto de 1932, conforme artigo de Padilha e Bonifácio. Nele, as autoras traçam um panorama histórico desse conceito desde o momento em que a indústria percebeu que, para manter seu ciclo de consumo, seria necessário dar aos produtos uma durabilidade limitada, ou seja, eles deveriam tornar-se ultrapassados ou indesejados com a maior rapidez possível.

Vários autores, como Mészaros (1989) e Bauman (2008), já nos alertavam sobre a sociedade descartável em que vivemos e na qual não interessa a produção de bens que durem.

São diversas as obsolescências a que o sistema nos condena e, entre elas, está a da “desejabilidade” que implica fazer com que o produto se torne entediante para o seu consumidor.  Ser idoso, dessa maneira, passa a ser algo desgastado, não desejável, em uma sociedade que se renova, que comprime o tempo e faz da velocidade a sua marca. 

As formulações acerca da gestão da vida e da morte podem jogar luz sobre as possíveis relações entre a obsolescência programada de objetos e de pessoas. Michel Foucault (2015) descreve seu conceito de biopoder como uma mudança do momento histórico de prevalência do “poder soberano”, um poder que poderia tirar a vida ou deixar viver, para o momento em que o poder pode promover a vida ou desautorizá-la.

Já Mbembe (2018) vai além e, ao referir-se ao poder social e político, constrói o conceito de “necropolítica” no qual algumas pessoas podem viver e outras devem morrer.

Dessa maneira, percebemos que o conceito de “obsolescência programada” não é novo e aplica-se hoje aos mais idosos a partir da negação de políticas públicas voltadas a eles, e, ao contrário, na implantação de medidas como o congelamento do salário mínimo, e aumento desproporcional dos planos de saúde para quem completa 59 anos.

A descartabilidade dos idosos se revela até mesmo na impaciência dos motoristas de ônibus que devem esperar para que o passageiro mais velho possa descer do veículo mais lentamente. O mesmo se verifica no desrespeito às filas destinadas aos idosos ou no uso indevido das vagas exclusivas dos estacionamentos.

Afinal, por que identificamos tanto no discurso de Teich como no post do rapaz, que quer expulsar aposentados de seu sindicato, e na impaciência do motorista diante dos claudicantes idosos, um sintoma da chamada obsolescência planejada?

Penso que o conceito de instrumentalidade do qual fala Calligaris (1991) possa nos dar uma pista. Segundo ele, em nome da paixão humana por se livrar do sofrimento neurótico banal, aliena-se a própria subjetividade entregando-se como instrumento.  Em outras palavras, para não sustentar o saber impossível do que lhe falta, o neurótico sucumbe a um saber suposto – que Calligaris chama de saída perversa da neurose.

Então, nas situações a que me referi acima, digamos que haja um saber compartilhado do que é obsoleto e por isso, descartável, seja um eletrodoméstico ou um humano e, mais ainda, de que somente assim haverá lugar para um “novo”.

Creio que esteja aí um reflexo da exclusão social, destino daqueles que venham representar empecilho a esse saber suposto.

 

“Talvez já estejamos numa transformação do sintoma social dominante – que para Freud é um sintoma social neurótico – num sintoma social perverso, um sintoma no qual o saber paterno não é mais um saber suposto, mas é culturalmente um saber sabido e compartilhado.” (CALLIGARIS, 1991, p.117).

Texto adaptado do trabalho de conclusão do Curso de Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea – Instituto Sedes Sapientiae em 2020.

Pelo olhar de uma criança

Pelo olhar de uma criança

Pelo olhar de uma criança

Elaboração do luto

Dalvanira Lima, Psicanalista

27 de dezembro de 2022

 

O filme Verão 1993 (Espanha, 2017) é uma daquelas preciosidades que atribuo à sorte o prazer de tê-lo assistido. Sem qualquer tipo de recomendação, numa daquelas tardes em que o desejo de ir ao cinema precede a escolha do filme, corri os olhos pelas sinopses e acabei me decidindo por ele. Dirigido por Carla Simón, o longa-metragem chegou a figurar na lista de candidatos a uma indicação ao Oscar 2018 na categoria de Melhor Filme Estrangeiro, mas não foi escolhido. Além disso, Verão 1993 teve uma breve passagem pelo circuito comercial em dezembro de 2017 sem grande repercussão. Desde lá não encontrei mais de duas pessoas que o tivessem visto.

O filme conta a história de Frida (Laia Artigas), uma menina de seis anos que acaba de perder a mãe por complicações do vírus da AIDS e cujo pai também já era falecido. Foi desejo da mãe que, após sua morte, Frida fosse morar com o tio Esteve (David Verdaguer) e sua esposa Marga (Bruna Cusi), em vez de ficar com os avós maternos. Diante disso, Frida se muda para uma cidade no campo, onde vivem o tio, sua esposa e uma filha de quatro anos de idade, Anna (Etna Campillo). No decorrer do filme, Frida lidará com a perda da mãe e outras perdas subjacentes a esta, ao mesmo tempo em que precisa encontrar um lugar dentro da nova família.

Se de início somos capturados pela dimensão da perda com que a protagonista se vê confrontada por sua condição de criança. No decorrer da trama, nos surpreendemos com a maneira com que ela elabora o luto. A história se desenrola na medida em que Frida formula perguntas que lhe permitem construir um conhecimento de mundo sobre a experiência que está vivendo. Perguntas estas precariamente respondidas pelos adultos, pois evitam falar sobre a morte de sua mãe. Por um lado, os avós parecem ocupados em dedicar a ela um excesso de mimos na tentativa de poupá-la do sofrimento. Os tios, por outro, estão ocupados em integrá-la à família e dar conta dos impasses que isso representa em suas vidas.

Um olhar atento sobre o filme nos permite perceber que o enredo, assim como as técnicas cinematográficas que o estruturam, busca capturar a elaboração do luto de uma criança de forma muito espontânea, valendo-se para isso do recurso da câmera subjetiva[1]. O longa-metragem também parece dar relevo ao contraste entre como o luto é vivenciado pela menina e como este mesmo processo é elaborado pelos adultos que a rodeiam.

 

Frida (Laia Artigas)

O trabalho de elaboração do luto de Frida passa por questionamentos em relação ao seu vínculo com a mãe. “Minha mãe me amava”? “Eu era importante para ela”? São perguntas que, se não formuladas desta maneira, estão presentes nas atitudes de Frida. Para viver o luto, ela antes terá que se certificar do lugar que ocupava no desejo da mãe, e, a partir disso, seu lugar na nova família.

Tal foco no objeto perdido é um dos elementos que constituem o trabalho do luto. Em Luto e Melancolia, Freud (2011) nos lembra de que este é um processo que demanda tempo, pois as lembranças e expectativas ligadas ao objeto precisam ser uma a uma focalizadas e investidas para posteriormente serem desinvestidas, liberando o ego para novas ligações. Também Lacan (2016) se refere ao trabalho de luto como uma desobstrução das vias desejantes, que somente poderão retornar seu curso depois de concluído.

Na cena em que a família está reunida à mesa, inicia-se uma conversa em que a avó se mostra contrariada por não ter ficado com a guarda da menina. Neste momento, tia Lola (Montse Sanz) lembra que a irmã havia deixado claro na carta o que desejava. Frida que ouve a conversa, logo pergunta: “Que carta? O que estava escrito na carta?”. Os adultos procuram distraí-la e mudam de assunto.

A meu ver, o real destinatário da carta é Frida. Ainda que contivesse como enunciado o desejo da mãe de que sua filha ficasse com os tios e não com os avós; traz como enunciação, uma mensagem dirigida à filha. Talvez ela quisesse dizer que, por lhe amar é que escolheu as pessoas que cuidariam de Frida tão bem quanto ela, se pudesse.

A interação entre as duas crianças, Frida e sua prima Anna, é digna de nota. O recurso de câmera subjetiva capta isso de forma magnifica numa cena de brincadeira entre elas. Nesta, Frida se veste e se maquia como se fosse uma adulta. Ela representa uma mãe, inclusive faz de conta que está fumando, provavelmente, como sua própria mãe fazia. Anna, por sua vez, representa a filha. Na brincadeira, Anna pede à Frida que brinque com ela. Inicialmente, Frida reluta dizendo que está se sentindo muito cansada – possível menção ao estado debilitado da mãe de Frida, devido à doença -, mas, ao final, aceita, dizendo: “Te amo tanto tanto que não posso dizer não”. Combinam de brincar de cozinheira. Frida fica sentada enquanto Anna lhe serve as comidinhas. A cena se repete algumas vezes, até que Frida diz que não pode mais brincar, pois está muito cansada. 

Nessa brincadeira podemos perceber o paralelismo entre Frida e sua mãe. A mãe, no faz de conta, está muito cansada, mas mesmo assim aceita brincar porque ama muito a filha. É curioso perceber que nesta situação acontece a identificação de Frida com a mãe quando ela assume seu lugar na brincadeira, mas também o lugar de filha, representado por Anna. Afinal, é Anna que ocupa o lugar que ela perdeu na configuração familiar. Isto fica evidente em outras cenas, nas quais Frida observa minunciosamente os tios – Esteve e Marga – cuidando de Anna.

Anna (Etna Campillo)  e Frida (Laia Artigas)  

Em outros momentos percebemos Frida às voltas com a ideia da morte. Por meio de questionamentos, observações ou mesmo flertes, ela busca construir uma teoria sobre isso, como é comum às crianças. Freud (2010) observa que as crianças tendem a falar sobre a morte de forma mais aberta e sem constrangimentos, visando encontrar um sentido para ela. Enquanto os adultos se mostram mais relutantes ao se referirem ao assunto. Ainda em relação a isso, Freud toma como exemplo a seguinte frase dita por uma criança: “Querida mamãe, quando você morrer, vou fazer isso e aquilo.”.

Neste sentido, o sangue é um elemento central na busca de Frida pela compreensão da morte. Em vários momentos do filme, a protagonista, quando diante dele, parece procurar um elo entre o sangue e morte.

Numa das cenas em que isso aparece, Frida machuca o joelho enquanto brinca. Ao vê-la ferida, outra criança tenta ampará-la, mas é impedida por sua mãe que teme o contato da filha com o sangue de Frida. Depois disso, enquanto Marga faz um curativo no corte, Frida passa os dedos no próprio sangue e fica observando, como quem busca uma explicação para a cena que acabara de acontecer – o que haveria naquele sangue que ela desconhecia?

Vale ressaltar que Frida adquiriu o vírus da AIDS da mãe durante sua gestação e, por isso se submeteu, reiteradas vezes, a exames de sangue para acompanhamento da carga viral. Daí, podemos inferir que essa situação acontecia numa atmosfera em que a doença não era um assunto tratado abertamente. A história se passa em 1993, momento em que a AIDS ainda era vista com uma carga de tabu maior da que existe hoje. Isso nos leva a pensar que o sangue ao mesmo tempo em que a liga à mãe pelo lado da vida, também a liga pelo lado da morte.

No decorrer da história percebemos que vai se construindo um vínculo entre Frida e a nova família, ainda que não sem percalços. Afinal, para os tios, mais do que o aceite da missão que lhes delegou a mãe de Frida, foi necessário que eles reconhecessem como deles o desejo de adotá-la.

Frida por sua vez vai se assegurando desse lugar e passa a se referir a sua mãe, como a “mãe de antes”. O lugar vazio deixado pelo objeto que não existe mais passa a ser simbolizado como a “mãe de antes”, que por sua vez, abre-se para o desejo de ser filha de Marga, a quem passa a chamar de mãe.

Verão 1993 evoca a resiliência da criança para lidar com situações desafiadoras, desde que, para isso haja um suporte favorável do ambiente em que esteja inserida. No caminho percorrido por Frida para elaborar o luto pela morte de sua mãe, vemos o quanto este é um processo que demanda tempo e investimento psíquico. Tempo que muitas vezes tentamos abreviar em nome do imperativo de felicidade a que nos vemos submetidos nos dias de hoje. Resta saber o preço que pagamos por isso. 

[1] A câmera subjetiva assume um dos personagens, passando a comportar-se segundo seu ponto de vista e de seus movimentos.

Verão 1993 (Estiu 1993, título original), Espanha, 2017, dirigido por Carla Simón.

Publicado anteriormente na Revista Deriva.

Pelo Whatsapp: “Não te amo mais”

Pelo Whatsapp: “Não te amo mais”

Pelo Whatsapp:

“Não te amo mais”

Dalvanira Lima, Psicanalista

12 de setembro de 2019

Outro dia me chamou atenção a palavra “SAIA”. Quatro letras maiúsculas e enormes fixadas na fachada do apartamento de um prédio. É claro, que não sei o que a pessoa que colocou essa palavra quis dizer, mas não resisti em criar minha própria versão.

 Pensei logo em alguém mandando embora outro alguém que ele não suportasse mais. Aquela palavra que pelo tamanho das letras soava como grito poderia muito bem ser um “Saia da minha vida”.

 

Mesmo que essa inusitada maneira de romper um relacionamento seja mero devaneio, na vida real têm acontecido situações em que o conhecido “fora” não é dito “olho no olho”, mas via mensagem de Whatsapp.

Recentemente, esse assunto foi discutido nas redes sociais em razão do suicídio de uma Youtuber, avisada pelo noivo na véspera de seu casamento, via Whatsapp, de que não queria mais se casar com ela.

A polêmica foi aguçada pelo desfecho trágico da história, mas acredito que vale a pena pensar nas implicações dessa maneira de evitar o contato pessoal quando se trata de dizer ao outro “Não te quero mais” e qual a repercussão disso para os dois lados da história.

Nesses casos, ainda que num primeiro momento tendamos a olhar para aquele que é comunicado de que não é mais querido, há de se pensar também nas razões que impedem o outro de sustentar no “cara a cara” seu desejo de sair da relação.

Foto de Rachid Tank/Unsplash Photo Community

É inegável que o término de um relacionamento amoroso pode gerar sofrimento e despertar uma gama de sentimentos, independentemente da maneira como isso aconteça. Então, que efeito teria essa comunicação virtual na elaboração da perda do amor do outro e na posição subjetiva de cada um dos envolvidos?

Por mais que a comunicação virtual esteja mediando cada vez mais nossas relações, ainda não dispensamos a presença real do outro, e se pensamos numa valoração, esta ainda suplanta a primeira.

Desta valoração pode advir, para quem recebe a mensagem do término do relacionamento, o sentimento de falta de reconhecimento de sua pessoa e da história vivenciada por ambos, visto que o outro nem se deu ao trabalho de comunicar pessoalmente.

A comunicação virtual, nesses casos, também pode dificultar a aceitação do fato. O virtual como oposto do real pode alimentar o sentimento de negação diante da perda do amor do outro. Some-se a isso, a sensação de que frente a frente algo poderia ter sido feito para que o desfecho não fosse o do rompimento.

Tanto quanto o luto pela morte de um ente querido, o luto por outras perdas que enfrentamos no decorrer da vida também requer elaboração, o término de um relacionamento amoroso, por exemplo. E quando isso ocorre de forma virtual, eu diria que se acrescentam mais dificuldades ao processo de elaboração.

O rompimento de um relacionamento amoroso pode fazer reviver a experiência de desamparo primordial a que todos nós como humanos estamos sujeitos. Afinal, desde que chegamos ao mundo precisamos e demandamos o amor do outro.

 

“Nunca estamos mais desprotegidos ante o sofrimento do que quando amamos, nunca mais desamparadamente infelizes do que quando perdemos o objeto amado ou seu amor.” Freud (1930)

Se isso vale para qualquer forma de desfecho, tendo a achar que para aquele que utiliza o meio virtual para comunicar seu desejo de sair da relação, seja uma maneira de driblar sua incapacidade de suportar presencialmente a reação do outro frente à situação de desamparo.

A comunicação virtual nos dá a sensação de um tempo mais acelerado. Problemas que antes demandavam deslocamento, hoje são resolvidos com uma simples mensagem no Whatsapp.

Resta-nos saber se o tempo psíquico acompanha esta mesma velocidade quando se trata dos impasses das relações afetivas.

Fotos dos filhos nas redes sociais: Qual o limite da satisfação dos pais?

Fotos dos filhos nas redes sociais: Qual o limite da satisfação dos pais?

Fotos dos filhos nas redes sociais

Qual o limite da satisfação dos pais?

Dalvanira Lima, Psicanalista

15 de julho de 2019

Recentemente, o jornal El País publicou um artigo em que chama a atenção para a excessiva exposição da imagem de crianças na internet praticada, principalmente, pelos próprios pais.

Ainda que pais estejam abarrotando suas páginas nas redes sociais com fotos dos filhos, babar por seus pimpolhos não é um fenômeno que adveio com a internet.

Freud, em 1914, em seu artigo intitulado “Introdução ao Narcisismo”, já nos fala que os pais revivem nos filhos a oportunidade de restabelecer a imagem idealizada que um dia tiveram de si próprios – aquela fase em que se sentiram “o bebê mais lindo da mamãe”.

E disse ainda que esta tentativa de restabelecimento do narcisismo dos pais é fundamental para a constituição do Eu da criança. É essa imagem projetada pelo desejo dos pais que funcionará como um norte no qual a criança irá mirar para tornar-se o que virá a ser.

Nessa jornada, quando as coisas vão bem, tanto pais perceberão que os filhos não darão conta de ser tudo o que eles pais quiseram e não puderam ser quanto filhos, inseridos na sociedade, se descobrirão desejos de outras coisas que não só aquelas almejadas por seus pais.

 

Ensaio newborn 

Então, qual o problema em publicar na internet a foto da criança mais linda, esperta e inteligente do mundo?

Talvez nenhum. Salvo os excessos que podem estar relacionados à maior duração e intensidade da revivescência desse narcisismo dos pais, agora facilitadas pela fase tecnológica que estamos vivendo.  

Pais, que alimentados por curtidas e comentários elogiosos, ao transformar os filhos em objetos da satisfação de suas fantasias, podem se esquecer de que crianças, até recém-nascidos, são sujeitos e deveriam ser vistos e respeitados como tal.

Suzano e a falta de sentido: Quando a violência obtura a falta

Suzano e a falta de sentido: Quando a violência obtura a falta

Suzano e a falta de sentido

Quando a violência obtura a falta

Gabriela Garcia, Psicanalista

13 de maio de 2019

Tragédias como a de Suzano1 nos aterrorizam de várias formas e uma delas é pela aparente falta de sentido. Diante da notícia de alunos e professores mortos por ex-alunos, sentimos tristeza, dor, raiva, medo, mas também uma profunda perplexidade pelo enigma possivelmente indecifrável que cerca esse tipo de acontecimento. Por quê? Para quê? Em nome de ou contra quem? Até quando?

Um caminho para refletir sobre Suzano passa pela importância da construção de sentido. Ao longo da vida, tecemos uma narrativa pessoal que busca organizar simbolicamente nossas experiências. Exemplo: nossa opinião sobre um relacionamento ou um emprego descreve não apenas essas vivências, mas também conta sobre quem somos. O entendimento (maior ou menor) que alcançamos sobre nós mesmos e sobre o mundo nos ajuda a lidar com os desafios da vida.

A elaboração da narrativa pessoal envolve a capacidade de percepção e de compreensão da nossa realidade interna e externa. Percebemos e compreendemos a existência, criando significados para ela, por meio das relações (conosco e com os outros). A história dos autores do crime de Suzano indica um cenário de alienação de vínculos importantes (família e escola) para a construção de sentido.

O ambiente familiar – o modo como vemos e somos vistos nessa teia de relações primordial – pode favorecer ou prejudicar o reconhecimento e o enriquecimento da singularidade que podemos vir a ser. O olhar ausente ou depreciativo dos primeiros cuidadores empobrece (e eventualmente anula) a visão que a criança tem de si mesma. Da mesma forma, o ambiente escolar e todas as possibilidades de troca e aprendizado que ele oferece (ou não), favorece ou prejudica a auto-imagem, os relacionamentos, as expectativas e o desempenho do aluno.

O bullying não visto e não enfrentado é uma zona de intersecção ilustrativa. Ele pode não ser a motivação principal nem única de ataques como o de Suzano (uma compreensão multifatorial é mais apropriada), porém é um elemento revelador da ausência de sentido.

Foto postada no Facebook pouco antes do massacre

O abuso não percebido e/ou não elaborado aniquila não apenas seu próprio sentido como o sentido que poderia ser atribuído à família e à escola (vínculo, proteção, estímulo, atenção, carinho, pertencimento). Uma vivência para a qual não encontramos significado (porque nada sobre ela foi dito, pensado e cuidado) ou para qual encontramos um significado insuportável, poderá ser ressignificada futuramente. A arte, os sonhos, os delírios, as doenças e a violência são caminhos potentes de ressignificação.

No ato planejado e extremo de eliminar vidas, o sentido pode ter sido construído por meio da violência, que carrega uma mensagem explícita de poder, controle, superioridade, em oposição à vulnerabilidade, confusão e impotência causadas pelo bullying não visto e/ou não cuidado.

Os autores de Suzano possivelmente viveram com a família e a escola os sentimentos destrutivos que reproduziram de modo letal. Uma hipótese é de que tenham criado, enfim, um significado (lamentável e repudiável) para narrativas pessoais esvaziadas justamente pelas relações que poderiam ajudá-los na construção de sentido.

(1) No dia 13/03/2019, dois jovens mataram 8 pessoas, feriram 11 e, em seguida, se suicidaram, num ataque à escola Raul Brasil, onde haviam estudado, na cidade de Suzano (SP).