Resistência e Revolta

Em busca da saúde mental perdida

Gualberto Gouvêia, Psicanalista

17 de fevereiro de 2019

Introdução

O trabalho pode ser fonte de saúde ou adoecimento. Segundo Marx, o homem se humaniza ao trabalhar. É claro que ele não está falando do trabalho alienante, que isola o sujeito e o faz desconhecer o mundo que o cerca. Seligmann-Silva (2011) faz essa diferenciação ao salientar que a saúde é o estado ideal quando as forças vitais estão harmonizadas, enquanto o adoecimento é um continuum no qual se estabelecem lutas entre forças vitais e forças desestabilizadoras. A autora destaca ainda, que a saúde mental não pode ser confundida com adaptação.

O trabalhador é sempre convidado a se adaptar, a aceitar as condições laborais que lhe são atribuídas. Ao concordar, se reprime, aceita a condição de mais-repressão que lhe é imposta, uma repressão que lhe tira a substância da vida, o amor fati  de que fala Nietzsche[1].

Para Marx, a sociedade se realiza pelo trabalho. Classes sociais, luta de classes, exploração, criação de riqueza, proletarização, humanização. Tudo se concretiza pelas relações sociais de produção. A teoria de Marx, é sempre bom lembrar, é uma teoria inacabada e sempre em movimento, se construindo em direção à emancipação do trabalhador de determinada época e lugar. O capitalismo se mostra dinâmico, complexo, e a teoria marxista procura explicar essa complexidade que procura nos fazer crer que existe uma mão misteriosa, quase divina dirigindo as excentricidades do dito mercado.

Os sindicatos dos trabalhadores, mesmo aqueles de linha socialista, ao longo da história foram se adaptando e abandonando os programas revolucionários de emancipação da classe trabalhadora em troca de uma coexistência pacífica. Assim como os sindicatos foram se adaptando, os trabalhadores também foram se contentando com lutas específicas e temporais de acordo com suas categorias. As lutas sociais mais amplas foram sendo gradativamente superadas pelo modo de vida que deslocou o objetivo de emancipação de classe por outros valores, pelo acesso ao consumo, por exemplo. Dessa forma, os sindicatos seriam organizações perfeitamente integradas ao modo de produção capitalista segundo Liguori e Voza (2017)

O princípio da realidade, no entanto, coloca o mundo do trabalho como um mundo de sofrimento pela incapacidade de termos nossos impulsos satisfeitos, advêm a carência e a necessidade de mais trabalho (H. Marcuse, 2015). O mundo se configura como absurdo diante de tanta coisa que se deseja e que não se obtém. A competitividade se estabelece e gera hierarquia entre os mais capazes, aqueles que melhor desempenham. Dessa maneira, aquele mundo de “coexistência pacífica” não existe. As insatisfações estão latentes e o sistema procura discipliná-las e controlá-las.

Tenta-se marcar no imaginário dos trabalhadores que a desigualdade é condição humana. Para que a aceitem, buscam-se elementos de legitimação dessa dessemelhança. A elite cria seus símbolos de poder e diferenciação estigmatizando e desqualificando tudo o mais que não lhe sirva aos seus propósitos. O grotesco deve ser a marca do dominado que não deve se dar conta de sua condição.

Os trabalhadores são, muitas vezes, levados à falsa compreensão de que a diferenciação de poder se dá por uma desigualdade natural, pela meritocracia. Na Idade Média, os reis usavam a coroa, na academia, antes de uma palestra, são exibidos os títulos do acadêmico buscando legitimar a superioridade de um sobre o outro.

Nem todos chegarão no topo social. Aqueles que conseguirem, serão chamados de elite dominante, mas, para isso, deverão, muito provavelmente, causar danos aos outros. O poder será, então, a consequência da disputa desigual e não da convivência pacífica.

Dois casos serão aqui analisados como exemplos de luta de classes intermeados por um terceiro. O primeiro, um caso de revolta de gráficos insatisfeitos com a condição degradante de ganhos cada vez mais baixos, situação insalubre de moradia e ainda convivendo com a opulência do patrão. Na sequência temos um interregno representado pelo caso das irmãs Papin. O mundo passando por mudanças nas relações entre patrões e empregados com a consequente resistência por parte dos primeiros em aceitar o trabalhador como sujeito de sua história. Por fim, uma babá, um símbolo de uma época em que os trabalhadores ainda se assemelham ao escravo tendo que estar permanentemente a serviço de seus senhores.

As disputas não se dão sem afetos. Freud (2010) salienta que o ódio é anterior ao amor. Por mais elementos legitimadores de que disponha a classe dominante, para muitos, para os mais saudáveis, o inconformismo com sua própria condição poderá levá-los ao ódio, ainda que tenham que sublimá-lo em nome da convivência social. Mas nem sempre isso acontece, como veremos a seguir.

 

Resistência: Os Gráficos e os gatos

Nos anos que antecederam a Revolução Industrial, o processo de produção era bem diferente dos métodos fordista e taylorista do século XX. Durante os séculos XVI e XVII as oficinas utilizavam o processo de produção manufatureira que exigia poucos instrumentos e ferramentas, empregando basicamente a força de trabalho humana. O processo era lento e a produção pequena. Essas oficinas artesanais, não raras vezes, abrigavam os próprios trabalhadores que não tinham outra renda senão a sua força de trabalho. Era exatamente esse o caso da gráfica de Jacques Vicent. Patrões e empregados moravam sob o mesmo teto, mas, diferentemente do que poderia parecer, a convivência não era nada pacífica conforme relata um operário dessa oficina (R. Darton, 2018).

É justamente nessa ocasião que começa a surgir o que Marx (1978) chamará de “subsunção formal”, ou seja, o processo de exploração do trabalho do outro separando o produtor direto de seus meios de produção transformando-o em assalariado. A desigualdade social será a mais perversa das consequências dessa mudança nas relações sociais. Conforme os maquinários vão sendo introduzidos no sistema produtivo, a subsunção passa a ser chamada de real pelo autor. Aumenta a mais-valia e o trabalhador se coisifica.

Os gráficos estão vivendo essa realidade. Assistem seu modo de vida ser desconstruído diante de seus olhos, concentração de riqueza, pobreza, exploração do trabalho assalariado, aumento do exército industrial de reserva e o consequente rebaixamento dos salários. Marx considera que temos nesse período o que ele chamou de “acumulação primitiva”, quando se consolida a separação entre o produtor direto e seus meios de produção.

Para a subsunção do trabalho ao capital é necessário que se estabeleça uma relação de compra e venda de mão-de-obra, uma relação de dependência econômica. As relações sociais se agudizam e as classes se tornam antagônicas. A riqueza é produzida cada vez mais socialmente enquanto a apropriação é cada vez mais privada. Enquanto uma classe se abastece de privilégios, a que produz, a que gera riqueza com seu trabalho apenas acumula miséria, degradação, carências múltiplas e alienação. O trabalhador se torna um apêndice da máquina.

A situação começou piorar para os operários das gráficas quando uma oligarquia de mestres assumiu o controle da indústria. O número de mestres foi reduzido retirando dos operários a esperança de também se tornarem um de acordo com sua produtividade.

Os mestres, por sua vez, passaram a contratar tipógrafos sem qualificação a um custo mais baixo. Eram chamados de “alugados”, diferentemente dos oficiais ou assalariados. O trabalho começava a ser visto como uma mercadoria e não como uma parceria, uma forma de solidariedade.

Apesar de se pagar menos a esses “alugados”, exigia-se deles assiduidade e sobriedade, se fossem qualificados, ainda melhor. Os patrões consideravam que os artesãos estavam se tornando preguiçosos, inconstantes, dissolutos e não confiáveis. Era preciso buscar novas formas de trabalho, assim, esses “alugados” poderiam provocar desconforto nos assalariados obrigando-os, pela concorrência, a trabalharem ainda mais.

Por essa época, o burguês clássico começa a tomar corpo, distanciando-se dos trabalhadores e evitando a todo custo o trabalho. Enquanto operários e aprendizes trabalhavam, os patrões “gozavam da doçura do sono”. Assim, os operários ressentidos pelo presente, e saudosos do passado quando não havia privilégios, tramam sua vingança.

Os gatos possuíam uma simbologia bem específica por essa época. Se na Idade Média, haviam representado as bruxas e até o demônio, agora representavam os patrões também. Era comum, em alguns festejos como o Carnaval, os operários passarem um gato de mão em mão, arrancando seus pelos para fazê-lo uivar.

A tortura e a matança dos gatos não eram uma fantasia sádica, eram antes, um aspecto importante da cultura popular, conforme demonstrado por Mikhail Bakhtin em seu estudo sobre Rabelais (R. Darton, 2018).

Os operários, costumeiramente se rebelavam contra o poder instituído, os padres, como representantes desse poder, também eram alvo dessa ira. Raspar o pelo de um gato, vesti-lo com uma mini batina e enforcá-lo, era uma maneira de demonstrar insatisfação contra a opressão. Intimados pelas instâncias do poder a só obedecer, esperavam a hora para dar o golpe e virar o jogo.

A partir do momento que os submissos conseguem se unir para conspirar contra os senhores, assim que sentem e constroem sua força coletiva, a guerra pode ser retomada. Rebelião, Re-bellum: a guerra recomeça, o antigo vencido se recompõe (F. Gross, 2018, pos. 400 no Kindle).

Era exatamente isso que esperavam os operários daquela gráfica francesa que não interiorizaram a submissão, eles apenas a suportavam por receio da exclusão, da demissão e da rua como destino.

Cansados de serem explorados pelo burguês e sua esposa, exaustos por terem de aturar os gatos dos patrões que uivavam à noite no telhado perto do sótão a eles reservado sem os deixarem dormir, enraivecidos por terem de disputar com os gatos até a comida da casa, os operários urdiram sua vingança, não sem uma dose de humor. A esse respeito, recorremos a Freud (2017) para lembrar que o chiste é uma expressão do inconsciente que nos ajuda a suportar os desejos recalcados, oferecendo no lugar, um modo de expressão socialmente aceitável. Lembrando que, naqueles dias, massacrar os gatos era algo totalmente aceito e levado mesmo na galhofa. Assim, o que planejaram os operários, além de restituir um mínimo de dignidade, lhes proporcionaria elevada dose de prazer.

Agoniados com a situação da algazarra promovida pelos gatos, os operários passaram a dizer ao ingênuo e crédulo patrão, que a casa estava infestada de gatos que promoviam um sabá à noite. Para reforçar essa tese, um dos operários passou a imitar os bichanos próximo ao quarto do casal para que eles também não pudessem dormir. A estratégia fez efeito. O patrão autorizou que se promovesse uma matança dos felinos, mas não uma matança indiscriminada. De acordo com a patroa, a gata chamada la grise deveria ser poupada, uma vez que era sua gata de estimação.

Ora, essa foi praticamente a senha para que la grise fosse a primeira vítima da fúria dos operários. Sabiam que, dessa forma, atacavam a própria casa, atacando seu bicho de estimação, os operários estupravam simbolicamente a patroa como supremo insulto ao patrão, que a tinha como bem maior. Os operários, num simulado e ritualizado júri, enforcavam os gatos um a um.

Matando a gata, os homens violavam o tesouro mais íntimo da casa burguesa e escapavam ilesos. Isto que era maravilhoso naquilo tudo. O simbolismo disfarçava o insulto suficientemente bem para não sofrerem consequências. Enquanto o burguês se irritava com a perda de trabalho, sua esposa, menos obtusa, praticamente lhe dizia que os operários a haviam atacado sexualmente, e gostariam de matá-lo (R. Darton. S018, pag. 134).

Ao executarem os gatos, os trabalhadores apontavam o dedo e julgavam como culpados seus patrões que os havia impingido excesso de trabalho, alimentação deficiente e, enquanto estes viviam no luxo, os operários sofriam as mais diversas privações. Diante das condições trabalhistas que se deterioravam, havia um misto de saudosismo dos tempos passados, quando patrões e empregados conviviam basicamente sob as mesmas condições e revolta contra os burgueses e todo o sistema que os oprimia e os humilhava. Perante esse cenário, é razoável considerar que uma revolta começava a ganhar corpo. A indignação contra as condições degradantes de trabalho e o tratamento humilhante levou ao massacre dos gatos e, anos mais tarde, essa efervescência contribuiria para criar as condições da Revolução Francesa.

Os operários se sentiram vingados e se divertiram ao mesmo tempo. Primeiro atormentaram o burguês com os miados para que ele autorizasse a matança, depois usaram a matança para ridicularizá-lo e acusá-lo de administração injusta da oficina. Ao matar a gata de estimação da patroa, a agrediam de maneira contundente em seu simbolismo mais íntimo. Ao quebrarem literalmente a espinha de la grise, chamavam a patroa de feiticeira e prostituta, transformando o patrão em corno e tolo. Com o insulto os operários tiveram seu momento de glória que seria contado e recontado por muito tempo nas diversas rodas de conversas como forma de resistência à opressão, sempre com muito humor em nome da saúde mental.

Sacrifício de animais no Sec. XVIII

Interregno: O caso das irmãs Papin

Se procurarmos a palavra interregno no dicionário, verificaremos que se trata de um momento em que um rei morre sem que outro ainda não tenha assumido o trono. Era uma oportunidade de mudanças. Gramsci ampliou esse conceito definindo-o como uma situação em que os governantes já não possuem mais o poder e o povo anseia por mudanças. Para ele, é o momento em que dada ordem social perde aderência e já não pode se impor. As velhas normas já não têm efeito, mas outras ainda não se firmaram.

No caso das irmãs Papin, quando o presidente do júri pergunta a elas durante o julgamento, se haviam sido vitimas de um tratamento ultrapassado, elas respondem que não. Provavelmente, elas próprias não tivessem consciência das mudanças que ocorriam pelo mundo a ponto do historiador Eric Hobsbawn definir esse período como “A era dos Extremos”.

O caso das irmãs Papin e tudo que o envolveu, é bastante representativo de um período histórico. Duas irmãs, praticamente sem convívio familiar, são postas em um internato de freiras. São tiradas de lá pela mãe que vê nelas uma fonte de renda e as coloca para trabalhar em casas de família como domésticas. Mãe castradora, subtrai das filhas todo o salário e administra os locais nos quais deveriam trabalhar sempre procurando aumentar seus ganhos.

A mais velha, Christine, vai trabalhar na casa da família Lancelin e logo convence sua patroa a chamar também sua irmã Léa para o emprego. A relação entre patrões e empregados reflete muito do período, o começo dos anos 30 quando havia separação ostensiva entre as classes sociais.

A relação, aparentemente normal, evolui para momentos de tensão. A sra. Lancelin costumava usar uma luva branca para verificar se havia pó sobre os moveis. Um episódio, em que obriga Léa a se ajoelhar para pegar um papel no chão, é sintomático de um tratamento pleno de soberba de classe. Nessa ocasião, Léa adverte a irmã que não suportaria mais essa humilhação e, da próxima vez, reagiria.

Um dia, ao passar roupa, há uma interrupção no fornecimento de energia e as irmãs não conseguem passar as peças que mãe e filha deveriam usar em um jantar. Ficam amedrontadas esperando a chegada das patroas. Quando elas chegam as irmãs não estão mais dispostas a aceitar as humilhações e se lançam sobre mãe e filha, primeiro arrancando-lhes os olhos para, em seguida, matá-las com martelo e faca. Na sequência, recolhem-se aos seus quartos e, de camisola sobre a cama, aguardam a chegada da polícia[2].

O debate que se seguiu sobre esse crime foi intenso. Os juristas afirmavam que era um caso de pena capital, os psiquiatras diziam que elas eram perfeitamente normais e sabiam exatamente o que estavam fazendo. Por outro lado, a intelectualidade francesa viu no crime um exemplo da luta de classes. Sartre e Simone de Beauvoir disseram mesmo que os verdadeiros assassinos eram os patrões, representantes da velha burguesia.

Roudinesco (2008) relata que, segundo Lacan, a interrupção do fornecimento de energia, um episódio banal, teria sido o elemento desencadeador da psicose dupla das irmãs, uma alienação paranoica, sem descartar, porém, a questão de classe no episódio segundo a dialética do senhor e do escravo.

Apesar de alguns autores como Nasio (2001) descartarem completamente qualquer envolvimento da questão social no evento, faço a opção de considerar que sim, a luta de classes esteve presente nesse crime.

Até que ponto um subalterno deve se submeter aos caprichos de seus patrões? A servidão voluntária deve ser superada. O pensamento do escravo deve ser superado. A emancipação dos trabalhadores passa pela reação ao trabalho alienante e humilhante. No caso das irmãs Papin, que será referência para o que se segue, tanto o histórico de vida quanto o quadro social da época contribuíram para o desfecho do fato.

A sociedade, em todas as épocas, busca a normalização das condutas, conforme assinala Foucault (2014). A normalização é uma questão diretamente ligada ao poder e a gestão do modo de produção. O sistema sabe que a busca pela normalização deverá conviver com os movimentos de lutas e questionamentos, assim, não haverá apenas uma lei natural que imponha determinadas formas de comportamento, mas elementos coercitivos que se sobreponham às iniciativas emancipadoras de classe.

A sociedade da normalização procurará remédios para se impor como hegemônica vencendo as resistências. Esses remédios poderão ser na forma do aparato jurídico, das normas religiosas ou mesmo por prescrição medicamentosa.

As irmãs Papin desafiaram seu tempo a seu modo. Usaram dos elementos de que dispunham para o acerto de contas com seus patrões. Pode-se argumentar que os patrões, naquele momento, representavam muito da própria mãe, mas o caso é que, mesmo considerando essa possibilidade real, usaram essa força psicótica para vencer as resistências morais e passar ao ato.

O capitalismo se valeu do biopoder para se consolidar. Moldou os corpos para a produção e preparou as mentes para a submissão.  Para o sistema funcionar, os trabalhadores deveriam ser “regulares” como assina McDougall (1983). Muitos pretendem parecer regulares diante dos outros. Foi o que as irmãs Papin tentaram por muito tempo, mas era necessário um recalque tremendo de costumes, história de vida, perspectivas futuras. Um recalque que cobra seu preço.

Vivemos diante da ambivalência em relação à normalidade. Queremos ser diferentes ao mesmo tempo em que não desejamos ser anormais. Cada tempo e cada espaço modelam seus padrões de normalidade e nos perguntamos: normal em relação a quê? O desejo de transgredir é sinal de saúde, vitalidade de quem não se aprisionou pelas normas familiares e sociais. Transgredir, no entanto, é perigoso. Significa por em risco o amor dos pais, o respeito social dos normalizados. Nesse sentido, as irmãs tiveram a audácia de romper com a mãe, ainda que transferissem esse papel à sra. Lancelin. O assassinato da patroa representou, assim, o ponto final de uma relação de dependência familiar e social. Sabiam que seriam presas e esperaram pacientemente, quase nuas, na cama. Talvez, tenham mesmo feito amor enquanto esperavam.

As irmãs Papin representam a passagem de uma época que se apresentava plena de perspectivas de mudanças para os trabalhadores. Encontrar as mesmas estruturas sociais quase cem anos depois, é um sinal de que, a história, em determinados eventos, demanda longa duração. Talvez, ainda estejamos em um interregno.

 

Revolta: a babá  

Os empregos ditos domésticos estão entre aqueles em que a vigilância pode se estabelecer com mais intensidade. O controle meticuloso e exaustivo visa à utilidade e à docilidade dos corpos. O poder disciplinar, como propõe Foucault (2014, pag. 138), se empenha em tornar o corpo “mais obediente ao torná-lo mais útil”, menos resistente. A doméstica está diante dos olhos, seu serviço é constantemente vigiado, seu campo de atuação é delimitado pelo espaço, mas quase nunca pelo tempo, sempre em aberto para que seus serviços possam ser reclamados a qualquer momento. A visibilidade facilita o julgamento e normaliza as ações domésticas.

A utilização de termos eufemísticos como “secretária do lar” não diminuem o estigma que pesa sobre essa profissão sempre sujeita ao olhar e ao julgamento do sistema capitalista que também se utiliza de expressões como “livre-empresa”, “empresa privada” para disfarçar aquilo que é na realidade: um sistema opressor que busca o lucro de forma incessante e, nessa busca, vilipendia corações e mentes em busca do lucro.

No Brasil, as empregadas domésticas são herdeiras diretas do modo de produção escravista. Quando da abolição, a mão de obra foi substituída pela branca, imigrante. Aos negros restou o trabalho que ninguém queria fazer, o trabalho maldito. Expulsos das áreas centrais das cidades foram morar nos locais de difícil acesso, nas periferias, nos cortiços.

Os apartamentos mais antigos, aqueles com “dependência de empregada”, reservavam esse dormitório ao lado da “área de serviço”, normalmente habitações diminutas, com banheiro igualmente diminuto e exclusivo para que sua utilizadora soubesse com clareza qual era o seu lugar: “da cozinha para fora”.

A empregada doméstica também representa o trabalho considerado “de mulher além de invocar o imaginário da servidão e submissão, características da escravidão” (J. C. Teixeira, 2014, pos. 2596 no Kindle). Comumente considerada como sendo “quase que da família”, à empregada é negado o acesso aos banheiros das casas, ao sofá da sala entre outras privações.

Os bons patrões oferecem roupas, calçados, bolsas às empregadas, quase sempre usados. Ao irem viajar, trazem para a empregada consideradíssima, um pequena lembrança como um chaveiro onde sê “estive em tal lugar e me lembrei de você”. Máquinas de lavar quebradas, geladeiras à beira do esgotamento, televisões quase no fim da vida útil, sempre encontram espaço na casa da empregada, acostumada a conviver com os restos.

Ii-Fu Tuan (1983) nos ensina que o lugar se constrói como espaço de identidade. Em uma casa, colocamos cortinas, quadros, recordações na estante. Esses elementos vão configurando nossa relação com o espaço que se transforma em lugar, onde nos reconhecemos. A empregada não dispõe desse espaço na casa. Apesar de passar boa parte de seu dia na casa dos patrões, essa casa lhe é estranha, nunca será o seu lugar.

Ainda hoje encontrarmos famílias que vão buscar jovens no interior para que trabalhem como domésticas. Acenam com a possibilidade de estudos e uma vida integrada à família, coisa que nunca acontece. A essas garotas, restará o trabalho extenuante, a escola noturna e os bens descartados dos patrões.

O trabalho doméstico possui semelhanças pelo mundo. Filmes como Histórias cruzadas, de 2012, com direção de Tate Taylor, é um exemplo. Outro é o livro de Slimani, Canção de Ninar que aborda temas como preconceito social, o papel da mulher na sociedade e relações de poder. Baseado em uma história real, conta o período de trabalho de uma babá na casa de uma família francesa com duas crianças.

A mãe das crianças, entediada com sua vida burguesa, resolve trabalhar como advogada. Seu marido resiste. Argumenta que ela ganharia tanto quanto seriam as despesas com a babá. Ela insiste e terminam por contratar Louise que vem com muitas referências.

Dotada de iniciativa, a babá logo conquista seus patrões e as crianças. Não demora para que Myrian, a patroa, sinta que Louise lhe é indispensável.

Louise mora na periferia da cidade. Seu apartamento é pobre, com aparelhos quebrados, cheia de dívidas, aluguel atrasado e com caixas de pertences fechadas espalhadas pelos exíguos cômodos. Seu banheiro chega a entupir e ela não consegue mais usar o chuveiro sendo obrigada a tomar o banho de “canequinha”. Em nenhuma circunstância, aquela casa se configura um lugar, um território onde Louise se reconheça e que assuma como seu. Para ela, a casa é um local de passagem. Sonha com a casa de seus patrões e vai fazendo dela o seu lugar imaginário.

Myrian é atenta. Quando volta com compras, tenta escondê-las para que Louise não se sinta humilhada. Esconde as notas de compras para que a babá não veja com clareza a distância que as separa.

Louise tem uma filha que não a respeita nem a visita. Na prática, é sozinha no mundo e se agarra à vida da família de Myrian procurando fazer dela a sua própria. Os filhos que lhe foram terceirizados passam a ser centrais para sua existência.

Nas férias, a dependência do casal faz com que levem Louise junto em viagem às ilhas gregas. O marido procura agradá-la e ela se sente desejada. Tal sensação passa rapidamente diante da postura distante e ela se ressente. Pensa que poderia ser, de fato, um membro da família.

No futuro, quando começar um relacionamento amoroso, Louise pensará em voltar às ilhas para ser servida, nunca mais servir. Ao pensar em sua vida retrospectivamente, lembrar-se-á que nunca foi servida, que esteve sempre a serviço de alguém, e que viu sua vida passar enquanto seus patrões a aproveitavam.

A existência de Louise é baseada no atendimento ao casal com seus filhos, mas essa relação possui suas tensões. Louise não aceita que a patroa lhe dê certas ordens. No começo, quando a babá chegou, Myrian estranhou que ela fizesse as crianças consumirem todos os produtos oferecidos, até o fim, chegando mesmo a “lamber a tampa do iogurte”. Se a princípio considerou essa postura pedagógica para seus filhos, a seguir passou a considerá-la exótica e desprovida de propósitos. A irritação era mútua. A babá não arredava o pé de seus valores enquanto Myrian ora se achava mesquinha, ora achava que a babá possuía problemas insuperáveis. Em um dos momentos mais tensos, a patroa joga no lixo o resto de um frango que Louise havia guardado na geladeira. Myrian sabia que a babá não gostava de desperdiçar nada, mas aquele frango havia passado do ponto faz tempo, de acordo com o julgamento da patroa. Ao final do dia de trabalho, quando Myrian entra na casa encontra sobre a mesa de jantar a carcaça do frango cirurgicamente limpa. Imagina que a babá tomou essa atitude para afrontá-la e pensa em demiti-la. Durante a noite, porém, considera que a babá vive em meio a carências múltiplas e que talvez ela, Myrian, esteja sendo injusta com a Louise.

Momentos como esse fazem da relação domiciliar palco perfeito e exemplar da luta de classes. As distâncias são instransponíveis e o jogo de poder está presente na opressão de um lado e na submissão do outro. Submissão que provoca ressentimentos, uma vez que as atitudes de Louise demonstram que as relações sociais de produção determinaram sua condição de inferioridade social, inferioridade com a qual ela reage afrontando a patroa e até mesmo sendo cruel com as crianças em determinadas situações. A babá nutre um ódio secreto pelas pelos filhos de Myrian, os quais ela diz amar, projetando nelas sua revolta pela sua condição imposta pelo injusto sistema capitalista.

Louise vai construindo aos poucos uma identidade para a patroa, uma identidade que passa pela condição de perdulária, insolente e opressora. Aos poucos vai construindo uma teia de ódio que clama por vingança física e social.

O marido de Myrian faz o alerta burguês: “ela é nossa empregada, não é nossa amiga”. Alerta, no entanto, que se perde diante da necessidade da presença daquela serviçal que se ocupa dos seus filhos.

Louise se vê sem saída quando percebe que as crianças estão crescendo e que, em breve, ela não será mais necessária. Ora, foi nessa casa que ela construiu sua identidade, nessa casa ela se sentia necessária, mesmo diante das contradições de sua condição de empregada.

Sugere a Myrian que tenha outro filho. Vislumbra aí a possibilidade de se tornar imprescindível ao casal. Comporta-se como uma investigadora observando se a menstruação da patroa acontece. Indaga a Myrian sobre a gravidez e esta responde que essa situação nem lhe passa pela cabeça. A babá se sente traída. Sente que seus serviços poderão ser descartados a qualquer momento. Ela olha para si e não vê nada. Sente sua identidade destruída e torna-se ainda mais ressentida. Um ressentimento que vai crescendo. Finalmente, ela mira naqueles que seriam o objeto de sua desgraça por estarem crescendo: as crianças. As mata como a dizer para Myrian que seria ela, Louise quem determinaria o momento de ir embora.

Conclusões

A saúde mental no trabalho, no sistema capitalista, é um projeto difícil de ser efetivado. Vive-se sob tensão, sob metas quase impossíveis de serem alcançadas. Acena-se com a meritocracia como exemplo de justiça para aqueles que perseguem seus objetivos. Essa meritocracia, no entanto, serve apenas para legitimar o poder de uns sobre os outros. Alguns poucos ascenderão profissionalmente enquanto a maioria permanecerá no limbo.

Por que uma parte significativa dos trabalhadores aceitam condições de trabalho que muitas vezes são humilhantes e degradantes? Por que servem aos patrões e não resistem à tirania do capital? La Boétie (2016) alerta que, defender a liberdade não é uma tarefa fácil, e só os mais insubordinados se lançam nessa jornada. Os trabalhadores não se dão conta que sua miséria passa pela aceitação como normal dessa condição. Acostumam-se com o cotidiano de suas vidas infelizes.

Em sua alienação, não percebem que, ao se esquecer da liberdade, se tornam submissos e sem a memória daquilo que se perdeu. A servidão voluntária passa a ser um hábito ostentado com orgulho por aqueles que querem servir com covardia aos senhores. Curiosamente, os trabalhadores, quando não emancipados de sua alienação, desconfiam de quem os ama e confiam em que os engana.

Os trabalhadores submissos temem, com base apenas em relatos, aqueles que, talvez, nunca tenham visto. Segundo La Boétie (2016), “é sempre assim: o povo inepto encarrega-se ele próprio de inventar mentiras nas quais, depois, é o primeiro a acreditar” (pag. 57).

Não raras vezes, a religião é utilizada como fonte de alienação. O capital usurpa os poderes divinos para continuar a praticar suas perversões. A elite dominante não se satisfaz apenas com a submissão, quer a adoração, não aceita que os mais pobres possam ascender socialmente. Querem que vivam na absoluta ignorância para melhor servi-los.

Os burgueses sabem aglutinar em torno de si os mais corruptos, avarentos e pelegos adesistas que anseiam por usufruir do butim resultante do trabalho dos explorados. Estes suplicam benefícios e favores renunciando sua condição de sujeito para alegrar ao patrão. No fundo, sabem que nada alcançariam por mérito próprio apesar de serem os primeiros a incentivar a “meritocracia”. Vivem num mundo de temor uns dos outros e são guiados pelo código do crime do qual são cúmplices.

A frustração, o ressentimento por aquilo que foi prometido e nunca cumprido, alimenta o ódio contra si e contra o outro. Valores supostamente humanos são deixados de lado em nome da própria sobrevivência. É a corrosão do caráter de que nos fala Sennett (1994, pos. 74 no Kindle). De acordo com o autor, “caráter são os traços pessoais a que damos valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem”.

A sociedade do desempenho de que nos fala Han (2017) é dominada pelo verbo poder que impõe sua própria produtividade. O trabalhador é direcionado a ser um empreendedor de si mesmo, explorado ele mesmo por decisão pessoal.

A autoexploração é muito mais eficiente do que a exploração alheia, pois caminha de mãos dadas com sentimento de liberdade. É possível, assim, haver exploração mesmo sem dominação. (pag. 22)

O “tu podes” exerce maior coerção sobre o trabalhador do que o “tu deves”. Impõe-se a culpa diretamente ao trabalhador por não ter alcançado as metas propostas. A sensação de fracasso leva ao adoecimento, à insolvência psíquica que significa a impossibilidade de liquidar o que se deve: o compromisso com o patrão, com os objetivos traçados. O capital destrói o amor próprio do trabalhador e se preocupa apenas em consumi-lo, ainda que o trabalhador pense que ele próprio seja o consumidor.

A falta de reconhecimento pela dedicação é um dos elementos da relação capital x trabalho. A maioria dos trabalhadores não terá reconhecimento algum ao longo de toda sua trajetória profissional. Eles buscarão mecanismos de resistência e sobrevivência. Levar para casa um clipe, uma caneta esferográfica barata, jogar papel higiênico no vaso para entupir o encanamento, podem ser formas simples de demonstrar insubmissão. O poder, no entanto, está sempre alerta e a procura da domesticação dos corpos para a produção. O sistema procura suprir as angústias e os desejos com promoções, com ofertas de ideologias como a “missão de empresa”, o “time que joga junto”. O time que joga junto, de fato, age como os operários da gráfica francesa. Insubordina-se contra a opressão de seus patrões. A angústia, quando sufoca, pode levar ao surto psicótico de quem grita pela própria sobrevivência como fez a babá.

Os gráficos transformaram a ira contra seus patrões em um grande evento festivo, um ritual em que seus algozes eram justiçados em meio a bebidas e gargalhadas. Resistiram à opressão e fizeram um pequeno ensaio das grandes revoltas populares que viriam a seguir.

As irmãs Papin mostraram que os tempos estavam mudando. Quando Léa adverte que não vai mais aceitar as humilhações de classe se estabelece uma ruptura comportamental de submissão histórica dos trabalhadores domésticos. Ali se verifica a verdadeira quebra da energia que levaria ao colapso e ao desenlace trágico.

Finalmente, a babá sinaliza que, por mais artifícios que o sistema engendre, com suas premiações, negociações e acenos de crescimento profissional, tudo está sempre incompleto, o trabalhador está sempre endividado e preso às engrenagens que suga a sua existência. Citado por Le Guillant (2006), Raymond de Ryckere em “A Criada Criminosa” assinala: “A criada vinga-se dos patrões ou dos filhos dos patrões da forma mais cruel e, pelo motivo mais fútil, às vezes, por uma simples repreensão” (pag.312).

Os casos aqui relatados buscaram exemplificar as complexas relações entre patrões e empregados no sistema capitalista. Um e outro distanciados por séculos, mas próximos em suas contradições como a dizer a todo o sistema que o pulso ainda pulsa.

[1] Em Ecce Homo, Nietzsche esclarece que o amor fati é uma fórmula para medir a grandeza da vontade afirmativa do homem, sua capacidade de aquiescência incondicional diante de todas as coisas inscritas na ordem do tempo (Dicionário Nietzsche).

[2] Existe farta literatura sobre o tema. Destacamos a tese de doutorado de Lacan: “Da Psicose Paranóica em suas relações com a personalidade” e também os “Escritos de Louis Le Guillant”.

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