Perversão social na segregação do idoso

Perversão social na segregação do idoso

Perversão social na segregação do idoso 

Dalvanira Lima, Psicanalista

05 de janeiro de 2023

 

O envelhecimento é considerado um tema chave para o mundo contemporâneo. Desde o campo da cultura até os âmbitos político e jurídico, o aumento da expectativa de vida nos tem chamado a confrontar uma série de desafios acerca do lugar do idoso na sociedade, bem como a reconhecer uma espécie de ressentimento em relação a este grupo social.

Nas discussões em torno da reforma da previdência de 2019, dentre suas justificativas, nada teve mais ênfase do que o aumento da expectativa de vida do brasileiro. Viver mais se tornou efeito colateral daquilo que deveria ser uma fruição do progresso do conhecimento humano, notadamente no campo da medicina.

Em consonância com esta perspectiva, no início da pandemia, a maior incidência da Covid-19 entre idosos soou como justificativa para alguns que preferiram negar ou omitir-se diante da gravidade da situação. Afinal, a letalidade é maior dentre aqueles que, supostamente, já teriam vivido o bastante.

Seguindo essa lógica, o médico Nelson Teich, antes de ocupar o cargo de ministro da saúde no governo Bolsonaro, declarou num congresso que, diante da escassez de recursos, privilegiaria a vida de um adolescente a de um idoso. 

Recentemente, me causou perplexidade o comentário de um jovem no Facebook para justificar a expulsão dos aposentados de seu sindicato, em que ele dizia: “Isso perdurará enquanto mantivermos amarrado em nosso pé esse imenso peso morto que são os aposentados. Graças a eles morreremos afogados. Ou fazemos algo ou é isso”.

Em “O mal-estar na civilização”, Freud (2010) apresenta, dentre as três maiores causas do sofrimento humano, a condição do corpo fadado ao declínio e à dissolução. Isso pode nos dar uma dimensão do desafio que é lidar com o envelhecimento e, por conseguinte, a finitude. Não somente para quem envelhece, mas também para aquele que, mesmo jovem, tem diante de si esta inexorável expectativa.

A condição do idoso na sociedade contemporânea nos lembra da “obsolescência programada” proposta por Bernard London em um panfleto de 1932, conforme artigo de Padilha e Bonifácio. Nele, as autoras traçam um panorama histórico desse conceito desde o momento em que a indústria percebeu que, para manter seu ciclo de consumo, seria necessário dar aos produtos uma durabilidade limitada, ou seja, eles deveriam tornar-se ultrapassados ou indesejados com a maior rapidez possível.

Vários autores, como Mészaros (1989) e Bauman (2008), já nos alertavam sobre a sociedade descartável em que vivemos e na qual não interessa a produção de bens que durem.

São diversas as obsolescências a que o sistema nos condena e, entre elas, está a da “desejabilidade” que implica fazer com que o produto se torne entediante para o seu consumidor.  Ser idoso, dessa maneira, passa a ser algo desgastado, não desejável, em uma sociedade que se renova, que comprime o tempo e faz da velocidade a sua marca. 

As formulações acerca da gestão da vida e da morte podem jogar luz sobre as possíveis relações entre a obsolescência programada de objetos e de pessoas. Michel Foucault (2015) descreve seu conceito de biopoder como uma mudança do momento histórico de prevalência do “poder soberano”, um poder que poderia tirar a vida ou deixar viver, para o momento em que o poder pode promover a vida ou desautorizá-la.

Já Mbembe (2018) vai além e, ao referir-se ao poder social e político, constrói o conceito de “necropolítica” no qual algumas pessoas podem viver e outras devem morrer.

Dessa maneira, percebemos que o conceito de “obsolescência programada” não é novo e aplica-se hoje aos mais idosos a partir da negação de políticas públicas voltadas a eles, e, ao contrário, na implantação de medidas como o congelamento do salário mínimo, e aumento desproporcional dos planos de saúde para quem completa 59 anos.

A descartabilidade dos idosos se revela até mesmo na impaciência dos motoristas de ônibus que devem esperar para que o passageiro mais velho possa descer do veículo mais lentamente. O mesmo se verifica no desrespeito às filas destinadas aos idosos ou no uso indevido das vagas exclusivas dos estacionamentos.

Afinal, por que identificamos tanto no discurso de Teich como no post do rapaz, que quer expulsar aposentados de seu sindicato, e na impaciência do motorista diante dos claudicantes idosos, um sintoma da chamada obsolescência planejada?

Penso que o conceito de instrumentalidade do qual fala Calligaris (1991) possa nos dar uma pista. Segundo ele, em nome da paixão humana por se livrar do sofrimento neurótico banal, aliena-se a própria subjetividade entregando-se como instrumento.  Em outras palavras, para não sustentar o saber impossível do que lhe falta, o neurótico sucumbe a um saber suposto – que Calligaris chama de saída perversa da neurose.

Então, nas situações a que me referi acima, digamos que haja um saber compartilhado do que é obsoleto e por isso, descartável, seja um eletrodoméstico ou um humano e, mais ainda, de que somente assim haverá lugar para um “novo”.

Creio que esteja aí um reflexo da exclusão social, destino daqueles que venham representar empecilho a esse saber suposto.

 

“Talvez já estejamos numa transformação do sintoma social dominante – que para Freud é um sintoma social neurótico – num sintoma social perverso, um sintoma no qual o saber paterno não é mais um saber suposto, mas é culturalmente um saber sabido e compartilhado.” (CALLIGARIS, 1991, p.117).

Texto adaptado do trabalho de conclusão do Curso de Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea – Instituto Sedes Sapientiae em 2020.

Pelo olhar de uma criança

Pelo olhar de uma criança

Pelo olhar de uma criança

Elaboração do luto

Dalvanira Lima, Psicanalista

27 de dezembro de 2022

 

O filme Verão 1993 (Espanha, 2017) é uma daquelas preciosidades que atribuo à sorte o prazer de tê-lo assistido. Sem qualquer tipo de recomendação, numa daquelas tardes em que o desejo de ir ao cinema precede a escolha do filme, corri os olhos pelas sinopses e acabei me decidindo por ele. Dirigido por Carla Simón, o longa-metragem chegou a figurar na lista de candidatos a uma indicação ao Oscar 2018 na categoria de Melhor Filme Estrangeiro, mas não foi escolhido. Além disso, Verão 1993 teve uma breve passagem pelo circuito comercial em dezembro de 2017 sem grande repercussão. Desde lá não encontrei mais de duas pessoas que o tivessem visto.

O filme conta a história de Frida (Laia Artigas), uma menina de seis anos que acaba de perder a mãe por complicações do vírus da AIDS e cujo pai também já era falecido. Foi desejo da mãe que, após sua morte, Frida fosse morar com o tio Esteve (David Verdaguer) e sua esposa Marga (Bruna Cusi), em vez de ficar com os avós maternos. Diante disso, Frida se muda para uma cidade no campo, onde vivem o tio, sua esposa e uma filha de quatro anos de idade, Anna (Etna Campillo). No decorrer do filme, Frida lidará com a perda da mãe e outras perdas subjacentes a esta, ao mesmo tempo em que precisa encontrar um lugar dentro da nova família.

Se de início somos capturados pela dimensão da perda com que a protagonista se vê confrontada por sua condição de criança. No decorrer da trama, nos surpreendemos com a maneira com que ela elabora o luto. A história se desenrola na medida em que Frida formula perguntas que lhe permitem construir um conhecimento de mundo sobre a experiência que está vivendo. Perguntas estas precariamente respondidas pelos adultos, pois evitam falar sobre a morte de sua mãe. Por um lado, os avós parecem ocupados em dedicar a ela um excesso de mimos na tentativa de poupá-la do sofrimento. Os tios, por outro, estão ocupados em integrá-la à família e dar conta dos impasses que isso representa em suas vidas.

Um olhar atento sobre o filme nos permite perceber que o enredo, assim como as técnicas cinematográficas que o estruturam, busca capturar a elaboração do luto de uma criança de forma muito espontânea, valendo-se para isso do recurso da câmera subjetiva[1]. O longa-metragem também parece dar relevo ao contraste entre como o luto é vivenciado pela menina e como este mesmo processo é elaborado pelos adultos que a rodeiam.

 

Frida (Laia Artigas)

O trabalho de elaboração do luto de Frida passa por questionamentos em relação ao seu vínculo com a mãe. “Minha mãe me amava”? “Eu era importante para ela”? São perguntas que, se não formuladas desta maneira, estão presentes nas atitudes de Frida. Para viver o luto, ela antes terá que se certificar do lugar que ocupava no desejo da mãe, e, a partir disso, seu lugar na nova família.

Tal foco no objeto perdido é um dos elementos que constituem o trabalho do luto. Em Luto e Melancolia, Freud (2011) nos lembra de que este é um processo que demanda tempo, pois as lembranças e expectativas ligadas ao objeto precisam ser uma a uma focalizadas e investidas para posteriormente serem desinvestidas, liberando o ego para novas ligações. Também Lacan (2016) se refere ao trabalho de luto como uma desobstrução das vias desejantes, que somente poderão retornar seu curso depois de concluído.

Na cena em que a família está reunida à mesa, inicia-se uma conversa em que a avó se mostra contrariada por não ter ficado com a guarda da menina. Neste momento, tia Lola (Montse Sanz) lembra que a irmã havia deixado claro na carta o que desejava. Frida que ouve a conversa, logo pergunta: “Que carta? O que estava escrito na carta?”. Os adultos procuram distraí-la e mudam de assunto.

A meu ver, o real destinatário da carta é Frida. Ainda que contivesse como enunciado o desejo da mãe de que sua filha ficasse com os tios e não com os avós; traz como enunciação, uma mensagem dirigida à filha. Talvez ela quisesse dizer que, por lhe amar é que escolheu as pessoas que cuidariam de Frida tão bem quanto ela, se pudesse.

A interação entre as duas crianças, Frida e sua prima Anna, é digna de nota. O recurso de câmera subjetiva capta isso de forma magnifica numa cena de brincadeira entre elas. Nesta, Frida se veste e se maquia como se fosse uma adulta. Ela representa uma mãe, inclusive faz de conta que está fumando, provavelmente, como sua própria mãe fazia. Anna, por sua vez, representa a filha. Na brincadeira, Anna pede à Frida que brinque com ela. Inicialmente, Frida reluta dizendo que está se sentindo muito cansada – possível menção ao estado debilitado da mãe de Frida, devido à doença -, mas, ao final, aceita, dizendo: “Te amo tanto tanto que não posso dizer não”. Combinam de brincar de cozinheira. Frida fica sentada enquanto Anna lhe serve as comidinhas. A cena se repete algumas vezes, até que Frida diz que não pode mais brincar, pois está muito cansada. 

Nessa brincadeira podemos perceber o paralelismo entre Frida e sua mãe. A mãe, no faz de conta, está muito cansada, mas mesmo assim aceita brincar porque ama muito a filha. É curioso perceber que nesta situação acontece a identificação de Frida com a mãe quando ela assume seu lugar na brincadeira, mas também o lugar de filha, representado por Anna. Afinal, é Anna que ocupa o lugar que ela perdeu na configuração familiar. Isto fica evidente em outras cenas, nas quais Frida observa minunciosamente os tios – Esteve e Marga – cuidando de Anna.

Anna (Etna Campillo)  e Frida (Laia Artigas)  

Em outros momentos percebemos Frida às voltas com a ideia da morte. Por meio de questionamentos, observações ou mesmo flertes, ela busca construir uma teoria sobre isso, como é comum às crianças. Freud (2010) observa que as crianças tendem a falar sobre a morte de forma mais aberta e sem constrangimentos, visando encontrar um sentido para ela. Enquanto os adultos se mostram mais relutantes ao se referirem ao assunto. Ainda em relação a isso, Freud toma como exemplo a seguinte frase dita por uma criança: “Querida mamãe, quando você morrer, vou fazer isso e aquilo.”.

Neste sentido, o sangue é um elemento central na busca de Frida pela compreensão da morte. Em vários momentos do filme, a protagonista, quando diante dele, parece procurar um elo entre o sangue e morte.

Numa das cenas em que isso aparece, Frida machuca o joelho enquanto brinca. Ao vê-la ferida, outra criança tenta ampará-la, mas é impedida por sua mãe que teme o contato da filha com o sangue de Frida. Depois disso, enquanto Marga faz um curativo no corte, Frida passa os dedos no próprio sangue e fica observando, como quem busca uma explicação para a cena que acabara de acontecer – o que haveria naquele sangue que ela desconhecia?

Vale ressaltar que Frida adquiriu o vírus da AIDS da mãe durante sua gestação e, por isso se submeteu, reiteradas vezes, a exames de sangue para acompanhamento da carga viral. Daí, podemos inferir que essa situação acontecia numa atmosfera em que a doença não era um assunto tratado abertamente. A história se passa em 1993, momento em que a AIDS ainda era vista com uma carga de tabu maior da que existe hoje. Isso nos leva a pensar que o sangue ao mesmo tempo em que a liga à mãe pelo lado da vida, também a liga pelo lado da morte.

No decorrer da história percebemos que vai se construindo um vínculo entre Frida e a nova família, ainda que não sem percalços. Afinal, para os tios, mais do que o aceite da missão que lhes delegou a mãe de Frida, foi necessário que eles reconhecessem como deles o desejo de adotá-la.

Frida por sua vez vai se assegurando desse lugar e passa a se referir a sua mãe, como a “mãe de antes”. O lugar vazio deixado pelo objeto que não existe mais passa a ser simbolizado como a “mãe de antes”, que por sua vez, abre-se para o desejo de ser filha de Marga, a quem passa a chamar de mãe.

Verão 1993 evoca a resiliência da criança para lidar com situações desafiadoras, desde que, para isso haja um suporte favorável do ambiente em que esteja inserida. No caminho percorrido por Frida para elaborar o luto pela morte de sua mãe, vemos o quanto este é um processo que demanda tempo e investimento psíquico. Tempo que muitas vezes tentamos abreviar em nome do imperativo de felicidade a que nos vemos submetidos nos dias de hoje. Resta saber o preço que pagamos por isso. 

[1] A câmera subjetiva assume um dos personagens, passando a comportar-se segundo seu ponto de vista e de seus movimentos.

Verão 1993 (Estiu 1993, título original), Espanha, 2017, dirigido por Carla Simón.

Publicado anteriormente na Revista Deriva.

Resistência e Revolta: em busca da Saúde mental perdida

Resistência e Revolta: em busca da Saúde mental perdida

Resistência e Revolta

Em busca da saúde mental perdida

Gualberto Gouvêia, Psicanalista

17 de fevereiro de 2019

Introdução

O trabalho pode ser fonte de saúde ou adoecimento. Segundo Marx, o homem se humaniza ao trabalhar. É claro que ele não está falando do trabalho alienante, que isola o sujeito e o faz desconhecer o mundo que o cerca. Seligmann-Silva (2011) faz essa diferenciação ao salientar que a saúde é o estado ideal quando as forças vitais estão harmonizadas, enquanto o adoecimento é um continuum no qual se estabelecem lutas entre forças vitais e forças desestabilizadoras. A autora destaca ainda, que a saúde mental não pode ser confundida com adaptação.

O trabalhador é sempre convidado a se adaptar, a aceitar as condições laborais que lhe são atribuídas. Ao concordar, se reprime, aceita a condição de mais-repressão que lhe é imposta, uma repressão que lhe tira a substância da vida, o amor fati  de que fala Nietzsche[1].

Para Marx, a sociedade se realiza pelo trabalho. Classes sociais, luta de classes, exploração, criação de riqueza, proletarização, humanização. Tudo se concretiza pelas relações sociais de produção. A teoria de Marx, é sempre bom lembrar, é uma teoria inacabada e sempre em movimento, se construindo em direção à emancipação do trabalhador de determinada época e lugar. O capitalismo se mostra dinâmico, complexo, e a teoria marxista procura explicar essa complexidade que procura nos fazer crer que existe uma mão misteriosa, quase divina dirigindo as excentricidades do dito mercado.

Os sindicatos dos trabalhadores, mesmo aqueles de linha socialista, ao longo da história foram se adaptando e abandonando os programas revolucionários de emancipação da classe trabalhadora em troca de uma coexistência pacífica. Assim como os sindicatos foram se adaptando, os trabalhadores também foram se contentando com lutas específicas e temporais de acordo com suas categorias. As lutas sociais mais amplas foram sendo gradativamente superadas pelo modo de vida que deslocou o objetivo de emancipação de classe por outros valores, pelo acesso ao consumo, por exemplo. Dessa forma, os sindicatos seriam organizações perfeitamente integradas ao modo de produção capitalista segundo Liguori e Voza (2017)

O princípio da realidade, no entanto, coloca o mundo do trabalho como um mundo de sofrimento pela incapacidade de termos nossos impulsos satisfeitos, advêm a carência e a necessidade de mais trabalho (H. Marcuse, 2015). O mundo se configura como absurdo diante de tanta coisa que se deseja e que não se obtém. A competitividade se estabelece e gera hierarquia entre os mais capazes, aqueles que melhor desempenham. Dessa maneira, aquele mundo de “coexistência pacífica” não existe. As insatisfações estão latentes e o sistema procura discipliná-las e controlá-las.

Tenta-se marcar no imaginário dos trabalhadores que a desigualdade é condição humana. Para que a aceitem, buscam-se elementos de legitimação dessa dessemelhança. A elite cria seus símbolos de poder e diferenciação estigmatizando e desqualificando tudo o mais que não lhe sirva aos seus propósitos. O grotesco deve ser a marca do dominado que não deve se dar conta de sua condição.

Os trabalhadores são, muitas vezes, levados à falsa compreensão de que a diferenciação de poder se dá por uma desigualdade natural, pela meritocracia. Na Idade Média, os reis usavam a coroa, na academia, antes de uma palestra, são exibidos os títulos do acadêmico buscando legitimar a superioridade de um sobre o outro.

Nem todos chegarão no topo social. Aqueles que conseguirem, serão chamados de elite dominante, mas, para isso, deverão, muito provavelmente, causar danos aos outros. O poder será, então, a consequência da disputa desigual e não da convivência pacífica.

Dois casos serão aqui analisados como exemplos de luta de classes intermeados por um terceiro. O primeiro, um caso de revolta de gráficos insatisfeitos com a condição degradante de ganhos cada vez mais baixos, situação insalubre de moradia e ainda convivendo com a opulência do patrão. Na sequência temos um interregno representado pelo caso das irmãs Papin. O mundo passando por mudanças nas relações entre patrões e empregados com a consequente resistência por parte dos primeiros em aceitar o trabalhador como sujeito de sua história. Por fim, uma babá, um símbolo de uma época em que os trabalhadores ainda se assemelham ao escravo tendo que estar permanentemente a serviço de seus senhores.

As disputas não se dão sem afetos. Freud (2010) salienta que o ódio é anterior ao amor. Por mais elementos legitimadores de que disponha a classe dominante, para muitos, para os mais saudáveis, o inconformismo com sua própria condição poderá levá-los ao ódio, ainda que tenham que sublimá-lo em nome da convivência social. Mas nem sempre isso acontece, como veremos a seguir.

 

Resistência: Os Gráficos e os gatos

Nos anos que antecederam a Revolução Industrial, o processo de produção era bem diferente dos métodos fordista e taylorista do século XX. Durante os séculos XVI e XVII as oficinas utilizavam o processo de produção manufatureira que exigia poucos instrumentos e ferramentas, empregando basicamente a força de trabalho humana. O processo era lento e a produção pequena. Essas oficinas artesanais, não raras vezes, abrigavam os próprios trabalhadores que não tinham outra renda senão a sua força de trabalho. Era exatamente esse o caso da gráfica de Jacques Vicent. Patrões e empregados moravam sob o mesmo teto, mas, diferentemente do que poderia parecer, a convivência não era nada pacífica conforme relata um operário dessa oficina (R. Darton, 2018).

É justamente nessa ocasião que começa a surgir o que Marx (1978) chamará de “subsunção formal”, ou seja, o processo de exploração do trabalho do outro separando o produtor direto de seus meios de produção transformando-o em assalariado. A desigualdade social será a mais perversa das consequências dessa mudança nas relações sociais. Conforme os maquinários vão sendo introduzidos no sistema produtivo, a subsunção passa a ser chamada de real pelo autor. Aumenta a mais-valia e o trabalhador se coisifica.

Os gráficos estão vivendo essa realidade. Assistem seu modo de vida ser desconstruído diante de seus olhos, concentração de riqueza, pobreza, exploração do trabalho assalariado, aumento do exército industrial de reserva e o consequente rebaixamento dos salários. Marx considera que temos nesse período o que ele chamou de “acumulação primitiva”, quando se consolida a separação entre o produtor direto e seus meios de produção.

Para a subsunção do trabalho ao capital é necessário que se estabeleça uma relação de compra e venda de mão-de-obra, uma relação de dependência econômica. As relações sociais se agudizam e as classes se tornam antagônicas. A riqueza é produzida cada vez mais socialmente enquanto a apropriação é cada vez mais privada. Enquanto uma classe se abastece de privilégios, a que produz, a que gera riqueza com seu trabalho apenas acumula miséria, degradação, carências múltiplas e alienação. O trabalhador se torna um apêndice da máquina.

A situação começou piorar para os operários das gráficas quando uma oligarquia de mestres assumiu o controle da indústria. O número de mestres foi reduzido retirando dos operários a esperança de também se tornarem um de acordo com sua produtividade.

Os mestres, por sua vez, passaram a contratar tipógrafos sem qualificação a um custo mais baixo. Eram chamados de “alugados”, diferentemente dos oficiais ou assalariados. O trabalho começava a ser visto como uma mercadoria e não como uma parceria, uma forma de solidariedade.

Apesar de se pagar menos a esses “alugados”, exigia-se deles assiduidade e sobriedade, se fossem qualificados, ainda melhor. Os patrões consideravam que os artesãos estavam se tornando preguiçosos, inconstantes, dissolutos e não confiáveis. Era preciso buscar novas formas de trabalho, assim, esses “alugados” poderiam provocar desconforto nos assalariados obrigando-os, pela concorrência, a trabalharem ainda mais.

Por essa época, o burguês clássico começa a tomar corpo, distanciando-se dos trabalhadores e evitando a todo custo o trabalho. Enquanto operários e aprendizes trabalhavam, os patrões “gozavam da doçura do sono”. Assim, os operários ressentidos pelo presente, e saudosos do passado quando não havia privilégios, tramam sua vingança.

Os gatos possuíam uma simbologia bem específica por essa época. Se na Idade Média, haviam representado as bruxas e até o demônio, agora representavam os patrões também. Era comum, em alguns festejos como o Carnaval, os operários passarem um gato de mão em mão, arrancando seus pelos para fazê-lo uivar.

A tortura e a matança dos gatos não eram uma fantasia sádica, eram antes, um aspecto importante da cultura popular, conforme demonstrado por Mikhail Bakhtin em seu estudo sobre Rabelais (R. Darton, 2018).

Os operários, costumeiramente se rebelavam contra o poder instituído, os padres, como representantes desse poder, também eram alvo dessa ira. Raspar o pelo de um gato, vesti-lo com uma mini batina e enforcá-lo, era uma maneira de demonstrar insatisfação contra a opressão. Intimados pelas instâncias do poder a só obedecer, esperavam a hora para dar o golpe e virar o jogo.

A partir do momento que os submissos conseguem se unir para conspirar contra os senhores, assim que sentem e constroem sua força coletiva, a guerra pode ser retomada. Rebelião, Re-bellum: a guerra recomeça, o antigo vencido se recompõe (F. Gross, 2018, pos. 400 no Kindle).

Era exatamente isso que esperavam os operários daquela gráfica francesa que não interiorizaram a submissão, eles apenas a suportavam por receio da exclusão, da demissão e da rua como destino.

Cansados de serem explorados pelo burguês e sua esposa, exaustos por terem de aturar os gatos dos patrões que uivavam à noite no telhado perto do sótão a eles reservado sem os deixarem dormir, enraivecidos por terem de disputar com os gatos até a comida da casa, os operários urdiram sua vingança, não sem uma dose de humor. A esse respeito, recorremos a Freud (2017) para lembrar que o chiste é uma expressão do inconsciente que nos ajuda a suportar os desejos recalcados, oferecendo no lugar, um modo de expressão socialmente aceitável. Lembrando que, naqueles dias, massacrar os gatos era algo totalmente aceito e levado mesmo na galhofa. Assim, o que planejaram os operários, além de restituir um mínimo de dignidade, lhes proporcionaria elevada dose de prazer.

Agoniados com a situação da algazarra promovida pelos gatos, os operários passaram a dizer ao ingênuo e crédulo patrão, que a casa estava infestada de gatos que promoviam um sabá à noite. Para reforçar essa tese, um dos operários passou a imitar os bichanos próximo ao quarto do casal para que eles também não pudessem dormir. A estratégia fez efeito. O patrão autorizou que se promovesse uma matança dos felinos, mas não uma matança indiscriminada. De acordo com a patroa, a gata chamada la grise deveria ser poupada, uma vez que era sua gata de estimação.

Ora, essa foi praticamente a senha para que la grise fosse a primeira vítima da fúria dos operários. Sabiam que, dessa forma, atacavam a própria casa, atacando seu bicho de estimação, os operários estupravam simbolicamente a patroa como supremo insulto ao patrão, que a tinha como bem maior. Os operários, num simulado e ritualizado júri, enforcavam os gatos um a um.

Matando a gata, os homens violavam o tesouro mais íntimo da casa burguesa e escapavam ilesos. Isto que era maravilhoso naquilo tudo. O simbolismo disfarçava o insulto suficientemente bem para não sofrerem consequências. Enquanto o burguês se irritava com a perda de trabalho, sua esposa, menos obtusa, praticamente lhe dizia que os operários a haviam atacado sexualmente, e gostariam de matá-lo (R. Darton. S018, pag. 134).

Ao executarem os gatos, os trabalhadores apontavam o dedo e julgavam como culpados seus patrões que os havia impingido excesso de trabalho, alimentação deficiente e, enquanto estes viviam no luxo, os operários sofriam as mais diversas privações. Diante das condições trabalhistas que se deterioravam, havia um misto de saudosismo dos tempos passados, quando patrões e empregados conviviam basicamente sob as mesmas condições e revolta contra os burgueses e todo o sistema que os oprimia e os humilhava. Perante esse cenário, é razoável considerar que uma revolta começava a ganhar corpo. A indignação contra as condições degradantes de trabalho e o tratamento humilhante levou ao massacre dos gatos e, anos mais tarde, essa efervescência contribuiria para criar as condições da Revolução Francesa.

Os operários se sentiram vingados e se divertiram ao mesmo tempo. Primeiro atormentaram o burguês com os miados para que ele autorizasse a matança, depois usaram a matança para ridicularizá-lo e acusá-lo de administração injusta da oficina. Ao matar a gata de estimação da patroa, a agrediam de maneira contundente em seu simbolismo mais íntimo. Ao quebrarem literalmente a espinha de la grise, chamavam a patroa de feiticeira e prostituta, transformando o patrão em corno e tolo. Com o insulto os operários tiveram seu momento de glória que seria contado e recontado por muito tempo nas diversas rodas de conversas como forma de resistência à opressão, sempre com muito humor em nome da saúde mental.

Sacrifício de animais no Sec. XVIII

Interregno: O caso das irmãs Papin

Se procurarmos a palavra interregno no dicionário, verificaremos que se trata de um momento em que um rei morre sem que outro ainda não tenha assumido o trono. Era uma oportunidade de mudanças. Gramsci ampliou esse conceito definindo-o como uma situação em que os governantes já não possuem mais o poder e o povo anseia por mudanças. Para ele, é o momento em que dada ordem social perde aderência e já não pode se impor. As velhas normas já não têm efeito, mas outras ainda não se firmaram.

No caso das irmãs Papin, quando o presidente do júri pergunta a elas durante o julgamento, se haviam sido vitimas de um tratamento ultrapassado, elas respondem que não. Provavelmente, elas próprias não tivessem consciência das mudanças que ocorriam pelo mundo a ponto do historiador Eric Hobsbawn definir esse período como “A era dos Extremos”.

O caso das irmãs Papin e tudo que o envolveu, é bastante representativo de um período histórico. Duas irmãs, praticamente sem convívio familiar, são postas em um internato de freiras. São tiradas de lá pela mãe que vê nelas uma fonte de renda e as coloca para trabalhar em casas de família como domésticas. Mãe castradora, subtrai das filhas todo o salário e administra os locais nos quais deveriam trabalhar sempre procurando aumentar seus ganhos.

A mais velha, Christine, vai trabalhar na casa da família Lancelin e logo convence sua patroa a chamar também sua irmã Léa para o emprego. A relação entre patrões e empregados reflete muito do período, o começo dos anos 30 quando havia separação ostensiva entre as classes sociais.

A relação, aparentemente normal, evolui para momentos de tensão. A sra. Lancelin costumava usar uma luva branca para verificar se havia pó sobre os moveis. Um episódio, em que obriga Léa a se ajoelhar para pegar um papel no chão, é sintomático de um tratamento pleno de soberba de classe. Nessa ocasião, Léa adverte a irmã que não suportaria mais essa humilhação e, da próxima vez, reagiria.

Um dia, ao passar roupa, há uma interrupção no fornecimento de energia e as irmãs não conseguem passar as peças que mãe e filha deveriam usar em um jantar. Ficam amedrontadas esperando a chegada das patroas. Quando elas chegam as irmãs não estão mais dispostas a aceitar as humilhações e se lançam sobre mãe e filha, primeiro arrancando-lhes os olhos para, em seguida, matá-las com martelo e faca. Na sequência, recolhem-se aos seus quartos e, de camisola sobre a cama, aguardam a chegada da polícia[2].

O debate que se seguiu sobre esse crime foi intenso. Os juristas afirmavam que era um caso de pena capital, os psiquiatras diziam que elas eram perfeitamente normais e sabiam exatamente o que estavam fazendo. Por outro lado, a intelectualidade francesa viu no crime um exemplo da luta de classes. Sartre e Simone de Beauvoir disseram mesmo que os verdadeiros assassinos eram os patrões, representantes da velha burguesia.

Roudinesco (2008) relata que, segundo Lacan, a interrupção do fornecimento de energia, um episódio banal, teria sido o elemento desencadeador da psicose dupla das irmãs, uma alienação paranoica, sem descartar, porém, a questão de classe no episódio segundo a dialética do senhor e do escravo.

Apesar de alguns autores como Nasio (2001) descartarem completamente qualquer envolvimento da questão social no evento, faço a opção de considerar que sim, a luta de classes esteve presente nesse crime.

Até que ponto um subalterno deve se submeter aos caprichos de seus patrões? A servidão voluntária deve ser superada. O pensamento do escravo deve ser superado. A emancipação dos trabalhadores passa pela reação ao trabalho alienante e humilhante. No caso das irmãs Papin, que será referência para o que se segue, tanto o histórico de vida quanto o quadro social da época contribuíram para o desfecho do fato.

A sociedade, em todas as épocas, busca a normalização das condutas, conforme assinala Foucault (2014). A normalização é uma questão diretamente ligada ao poder e a gestão do modo de produção. O sistema sabe que a busca pela normalização deverá conviver com os movimentos de lutas e questionamentos, assim, não haverá apenas uma lei natural que imponha determinadas formas de comportamento, mas elementos coercitivos que se sobreponham às iniciativas emancipadoras de classe.

A sociedade da normalização procurará remédios para se impor como hegemônica vencendo as resistências. Esses remédios poderão ser na forma do aparato jurídico, das normas religiosas ou mesmo por prescrição medicamentosa.

As irmãs Papin desafiaram seu tempo a seu modo. Usaram dos elementos de que dispunham para o acerto de contas com seus patrões. Pode-se argumentar que os patrões, naquele momento, representavam muito da própria mãe, mas o caso é que, mesmo considerando essa possibilidade real, usaram essa força psicótica para vencer as resistências morais e passar ao ato.

O capitalismo se valeu do biopoder para se consolidar. Moldou os corpos para a produção e preparou as mentes para a submissão.  Para o sistema funcionar, os trabalhadores deveriam ser “regulares” como assina McDougall (1983). Muitos pretendem parecer regulares diante dos outros. Foi o que as irmãs Papin tentaram por muito tempo, mas era necessário um recalque tremendo de costumes, história de vida, perspectivas futuras. Um recalque que cobra seu preço.

Vivemos diante da ambivalência em relação à normalidade. Queremos ser diferentes ao mesmo tempo em que não desejamos ser anormais. Cada tempo e cada espaço modelam seus padrões de normalidade e nos perguntamos: normal em relação a quê? O desejo de transgredir é sinal de saúde, vitalidade de quem não se aprisionou pelas normas familiares e sociais. Transgredir, no entanto, é perigoso. Significa por em risco o amor dos pais, o respeito social dos normalizados. Nesse sentido, as irmãs tiveram a audácia de romper com a mãe, ainda que transferissem esse papel à sra. Lancelin. O assassinato da patroa representou, assim, o ponto final de uma relação de dependência familiar e social. Sabiam que seriam presas e esperaram pacientemente, quase nuas, na cama. Talvez, tenham mesmo feito amor enquanto esperavam.

As irmãs Papin representam a passagem de uma época que se apresentava plena de perspectivas de mudanças para os trabalhadores. Encontrar as mesmas estruturas sociais quase cem anos depois, é um sinal de que, a história, em determinados eventos, demanda longa duração. Talvez, ainda estejamos em um interregno.

 

Revolta: a babá  

Os empregos ditos domésticos estão entre aqueles em que a vigilância pode se estabelecer com mais intensidade. O controle meticuloso e exaustivo visa à utilidade e à docilidade dos corpos. O poder disciplinar, como propõe Foucault (2014, pag. 138), se empenha em tornar o corpo “mais obediente ao torná-lo mais útil”, menos resistente. A doméstica está diante dos olhos, seu serviço é constantemente vigiado, seu campo de atuação é delimitado pelo espaço, mas quase nunca pelo tempo, sempre em aberto para que seus serviços possam ser reclamados a qualquer momento. A visibilidade facilita o julgamento e normaliza as ações domésticas.

A utilização de termos eufemísticos como “secretária do lar” não diminuem o estigma que pesa sobre essa profissão sempre sujeita ao olhar e ao julgamento do sistema capitalista que também se utiliza de expressões como “livre-empresa”, “empresa privada” para disfarçar aquilo que é na realidade: um sistema opressor que busca o lucro de forma incessante e, nessa busca, vilipendia corações e mentes em busca do lucro.

No Brasil, as empregadas domésticas são herdeiras diretas do modo de produção escravista. Quando da abolição, a mão de obra foi substituída pela branca, imigrante. Aos negros restou o trabalho que ninguém queria fazer, o trabalho maldito. Expulsos das áreas centrais das cidades foram morar nos locais de difícil acesso, nas periferias, nos cortiços.

Os apartamentos mais antigos, aqueles com “dependência de empregada”, reservavam esse dormitório ao lado da “área de serviço”, normalmente habitações diminutas, com banheiro igualmente diminuto e exclusivo para que sua utilizadora soubesse com clareza qual era o seu lugar: “da cozinha para fora”.

A empregada doméstica também representa o trabalho considerado “de mulher além de invocar o imaginário da servidão e submissão, características da escravidão” (J. C. Teixeira, 2014, pos. 2596 no Kindle). Comumente considerada como sendo “quase que da família”, à empregada é negado o acesso aos banheiros das casas, ao sofá da sala entre outras privações.

Os bons patrões oferecem roupas, calçados, bolsas às empregadas, quase sempre usados. Ao irem viajar, trazem para a empregada consideradíssima, um pequena lembrança como um chaveiro onde sê “estive em tal lugar e me lembrei de você”. Máquinas de lavar quebradas, geladeiras à beira do esgotamento, televisões quase no fim da vida útil, sempre encontram espaço na casa da empregada, acostumada a conviver com os restos.

Ii-Fu Tuan (1983) nos ensina que o lugar se constrói como espaço de identidade. Em uma casa, colocamos cortinas, quadros, recordações na estante. Esses elementos vão configurando nossa relação com o espaço que se transforma em lugar, onde nos reconhecemos. A empregada não dispõe desse espaço na casa. Apesar de passar boa parte de seu dia na casa dos patrões, essa casa lhe é estranha, nunca será o seu lugar.

Ainda hoje encontrarmos famílias que vão buscar jovens no interior para que trabalhem como domésticas. Acenam com a possibilidade de estudos e uma vida integrada à família, coisa que nunca acontece. A essas garotas, restará o trabalho extenuante, a escola noturna e os bens descartados dos patrões.

O trabalho doméstico possui semelhanças pelo mundo. Filmes como Histórias cruzadas, de 2012, com direção de Tate Taylor, é um exemplo. Outro é o livro de Slimani, Canção de Ninar que aborda temas como preconceito social, o papel da mulher na sociedade e relações de poder. Baseado em uma história real, conta o período de trabalho de uma babá na casa de uma família francesa com duas crianças.

A mãe das crianças, entediada com sua vida burguesa, resolve trabalhar como advogada. Seu marido resiste. Argumenta que ela ganharia tanto quanto seriam as despesas com a babá. Ela insiste e terminam por contratar Louise que vem com muitas referências.

Dotada de iniciativa, a babá logo conquista seus patrões e as crianças. Não demora para que Myrian, a patroa, sinta que Louise lhe é indispensável.

Louise mora na periferia da cidade. Seu apartamento é pobre, com aparelhos quebrados, cheia de dívidas, aluguel atrasado e com caixas de pertences fechadas espalhadas pelos exíguos cômodos. Seu banheiro chega a entupir e ela não consegue mais usar o chuveiro sendo obrigada a tomar o banho de “canequinha”. Em nenhuma circunstância, aquela casa se configura um lugar, um território onde Louise se reconheça e que assuma como seu. Para ela, a casa é um local de passagem. Sonha com a casa de seus patrões e vai fazendo dela o seu lugar imaginário.

Myrian é atenta. Quando volta com compras, tenta escondê-las para que Louise não se sinta humilhada. Esconde as notas de compras para que a babá não veja com clareza a distância que as separa.

Louise tem uma filha que não a respeita nem a visita. Na prática, é sozinha no mundo e se agarra à vida da família de Myrian procurando fazer dela a sua própria. Os filhos que lhe foram terceirizados passam a ser centrais para sua existência.

Nas férias, a dependência do casal faz com que levem Louise junto em viagem às ilhas gregas. O marido procura agradá-la e ela se sente desejada. Tal sensação passa rapidamente diante da postura distante e ela se ressente. Pensa que poderia ser, de fato, um membro da família.

No futuro, quando começar um relacionamento amoroso, Louise pensará em voltar às ilhas para ser servida, nunca mais servir. Ao pensar em sua vida retrospectivamente, lembrar-se-á que nunca foi servida, que esteve sempre a serviço de alguém, e que viu sua vida passar enquanto seus patrões a aproveitavam.

A existência de Louise é baseada no atendimento ao casal com seus filhos, mas essa relação possui suas tensões. Louise não aceita que a patroa lhe dê certas ordens. No começo, quando a babá chegou, Myrian estranhou que ela fizesse as crianças consumirem todos os produtos oferecidos, até o fim, chegando mesmo a “lamber a tampa do iogurte”. Se a princípio considerou essa postura pedagógica para seus filhos, a seguir passou a considerá-la exótica e desprovida de propósitos. A irritação era mútua. A babá não arredava o pé de seus valores enquanto Myrian ora se achava mesquinha, ora achava que a babá possuía problemas insuperáveis. Em um dos momentos mais tensos, a patroa joga no lixo o resto de um frango que Louise havia guardado na geladeira. Myrian sabia que a babá não gostava de desperdiçar nada, mas aquele frango havia passado do ponto faz tempo, de acordo com o julgamento da patroa. Ao final do dia de trabalho, quando Myrian entra na casa encontra sobre a mesa de jantar a carcaça do frango cirurgicamente limpa. Imagina que a babá tomou essa atitude para afrontá-la e pensa em demiti-la. Durante a noite, porém, considera que a babá vive em meio a carências múltiplas e que talvez ela, Myrian, esteja sendo injusta com a Louise.

Momentos como esse fazem da relação domiciliar palco perfeito e exemplar da luta de classes. As distâncias são instransponíveis e o jogo de poder está presente na opressão de um lado e na submissão do outro. Submissão que provoca ressentimentos, uma vez que as atitudes de Louise demonstram que as relações sociais de produção determinaram sua condição de inferioridade social, inferioridade com a qual ela reage afrontando a patroa e até mesmo sendo cruel com as crianças em determinadas situações. A babá nutre um ódio secreto pelas pelos filhos de Myrian, os quais ela diz amar, projetando nelas sua revolta pela sua condição imposta pelo injusto sistema capitalista.

Louise vai construindo aos poucos uma identidade para a patroa, uma identidade que passa pela condição de perdulária, insolente e opressora. Aos poucos vai construindo uma teia de ódio que clama por vingança física e social.

O marido de Myrian faz o alerta burguês: “ela é nossa empregada, não é nossa amiga”. Alerta, no entanto, que se perde diante da necessidade da presença daquela serviçal que se ocupa dos seus filhos.

Louise se vê sem saída quando percebe que as crianças estão crescendo e que, em breve, ela não será mais necessária. Ora, foi nessa casa que ela construiu sua identidade, nessa casa ela se sentia necessária, mesmo diante das contradições de sua condição de empregada.

Sugere a Myrian que tenha outro filho. Vislumbra aí a possibilidade de se tornar imprescindível ao casal. Comporta-se como uma investigadora observando se a menstruação da patroa acontece. Indaga a Myrian sobre a gravidez e esta responde que essa situação nem lhe passa pela cabeça. A babá se sente traída. Sente que seus serviços poderão ser descartados a qualquer momento. Ela olha para si e não vê nada. Sente sua identidade destruída e torna-se ainda mais ressentida. Um ressentimento que vai crescendo. Finalmente, ela mira naqueles que seriam o objeto de sua desgraça por estarem crescendo: as crianças. As mata como a dizer para Myrian que seria ela, Louise quem determinaria o momento de ir embora.

Conclusões

A saúde mental no trabalho, no sistema capitalista, é um projeto difícil de ser efetivado. Vive-se sob tensão, sob metas quase impossíveis de serem alcançadas. Acena-se com a meritocracia como exemplo de justiça para aqueles que perseguem seus objetivos. Essa meritocracia, no entanto, serve apenas para legitimar o poder de uns sobre os outros. Alguns poucos ascenderão profissionalmente enquanto a maioria permanecerá no limbo.

Por que uma parte significativa dos trabalhadores aceitam condições de trabalho que muitas vezes são humilhantes e degradantes? Por que servem aos patrões e não resistem à tirania do capital? La Boétie (2016) alerta que, defender a liberdade não é uma tarefa fácil, e só os mais insubordinados se lançam nessa jornada. Os trabalhadores não se dão conta que sua miséria passa pela aceitação como normal dessa condição. Acostumam-se com o cotidiano de suas vidas infelizes.

Em sua alienação, não percebem que, ao se esquecer da liberdade, se tornam submissos e sem a memória daquilo que se perdeu. A servidão voluntária passa a ser um hábito ostentado com orgulho por aqueles que querem servir com covardia aos senhores. Curiosamente, os trabalhadores, quando não emancipados de sua alienação, desconfiam de quem os ama e confiam em que os engana.

Os trabalhadores submissos temem, com base apenas em relatos, aqueles que, talvez, nunca tenham visto. Segundo La Boétie (2016), “é sempre assim: o povo inepto encarrega-se ele próprio de inventar mentiras nas quais, depois, é o primeiro a acreditar” (pag. 57).

Não raras vezes, a religião é utilizada como fonte de alienação. O capital usurpa os poderes divinos para continuar a praticar suas perversões. A elite dominante não se satisfaz apenas com a submissão, quer a adoração, não aceita que os mais pobres possam ascender socialmente. Querem que vivam na absoluta ignorância para melhor servi-los.

Os burgueses sabem aglutinar em torno de si os mais corruptos, avarentos e pelegos adesistas que anseiam por usufruir do butim resultante do trabalho dos explorados. Estes suplicam benefícios e favores renunciando sua condição de sujeito para alegrar ao patrão. No fundo, sabem que nada alcançariam por mérito próprio apesar de serem os primeiros a incentivar a “meritocracia”. Vivem num mundo de temor uns dos outros e são guiados pelo código do crime do qual são cúmplices.

A frustração, o ressentimento por aquilo que foi prometido e nunca cumprido, alimenta o ódio contra si e contra o outro. Valores supostamente humanos são deixados de lado em nome da própria sobrevivência. É a corrosão do caráter de que nos fala Sennett (1994, pos. 74 no Kindle). De acordo com o autor, “caráter são os traços pessoais a que damos valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem”.

A sociedade do desempenho de que nos fala Han (2017) é dominada pelo verbo poder que impõe sua própria produtividade. O trabalhador é direcionado a ser um empreendedor de si mesmo, explorado ele mesmo por decisão pessoal.

A autoexploração é muito mais eficiente do que a exploração alheia, pois caminha de mãos dadas com sentimento de liberdade. É possível, assim, haver exploração mesmo sem dominação. (pag. 22)

O “tu podes” exerce maior coerção sobre o trabalhador do que o “tu deves”. Impõe-se a culpa diretamente ao trabalhador por não ter alcançado as metas propostas. A sensação de fracasso leva ao adoecimento, à insolvência psíquica que significa a impossibilidade de liquidar o que se deve: o compromisso com o patrão, com os objetivos traçados. O capital destrói o amor próprio do trabalhador e se preocupa apenas em consumi-lo, ainda que o trabalhador pense que ele próprio seja o consumidor.

A falta de reconhecimento pela dedicação é um dos elementos da relação capital x trabalho. A maioria dos trabalhadores não terá reconhecimento algum ao longo de toda sua trajetória profissional. Eles buscarão mecanismos de resistência e sobrevivência. Levar para casa um clipe, uma caneta esferográfica barata, jogar papel higiênico no vaso para entupir o encanamento, podem ser formas simples de demonstrar insubmissão. O poder, no entanto, está sempre alerta e a procura da domesticação dos corpos para a produção. O sistema procura suprir as angústias e os desejos com promoções, com ofertas de ideologias como a “missão de empresa”, o “time que joga junto”. O time que joga junto, de fato, age como os operários da gráfica francesa. Insubordina-se contra a opressão de seus patrões. A angústia, quando sufoca, pode levar ao surto psicótico de quem grita pela própria sobrevivência como fez a babá.

Os gráficos transformaram a ira contra seus patrões em um grande evento festivo, um ritual em que seus algozes eram justiçados em meio a bebidas e gargalhadas. Resistiram à opressão e fizeram um pequeno ensaio das grandes revoltas populares que viriam a seguir.

As irmãs Papin mostraram que os tempos estavam mudando. Quando Léa adverte que não vai mais aceitar as humilhações de classe se estabelece uma ruptura comportamental de submissão histórica dos trabalhadores domésticos. Ali se verifica a verdadeira quebra da energia que levaria ao colapso e ao desenlace trágico.

Finalmente, a babá sinaliza que, por mais artifícios que o sistema engendre, com suas premiações, negociações e acenos de crescimento profissional, tudo está sempre incompleto, o trabalhador está sempre endividado e preso às engrenagens que suga a sua existência. Citado por Le Guillant (2006), Raymond de Ryckere em “A Criada Criminosa” assinala: “A criada vinga-se dos patrões ou dos filhos dos patrões da forma mais cruel e, pelo motivo mais fútil, às vezes, por uma simples repreensão” (pag.312).

Os casos aqui relatados buscaram exemplificar as complexas relações entre patrões e empregados no sistema capitalista. Um e outro distanciados por séculos, mas próximos em suas contradições como a dizer a todo o sistema que o pulso ainda pulsa.

[1] Em Ecce Homo, Nietzsche esclarece que o amor fati é uma fórmula para medir a grandeza da vontade afirmativa do homem, sua capacidade de aquiescência incondicional diante de todas as coisas inscritas na ordem do tempo (Dicionário Nietzsche).

[2] Existe farta literatura sobre o tema. Destacamos a tese de doutorado de Lacan: “Da Psicose Paranóica em suas relações com a personalidade” e também os “Escritos de Louis Le Guillant”.

Referências Bibliográficas

BOÉTIE, Etienne de La. Discurso da servidão voluntária (1577). São Paulo, Ed. Nós, 2016.

DARTON, Robert. O Grande Massacre de Gatos – E outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 2018. 4ª ed.

FOUCAULT, Michel. Os Anormais. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 2014.

—. Vigiar e punir – Nascimento da prisão. Petrópolis – RJ, 2014.

FREUD, Sigmund. O Chiste e sua relação com o inconsciente (1905). São Paulo, Cia. das Letras, 2017.

— O Mal Estar da Civilização. São Paulo, Cia. das Letras, 2010.

GEN – Grupo de Estudos Nietzsche. Dicionário Nietzsche. São Paulo, Ed. Loyola, 2016.

GROSS, Fredéric. Desobedecer. São Paulo, Ed. Ubu, 2018.

HAN, Byung-Chul. Agonia de Eros. Petrópolis – RJ, 2017.

HOBSBAWN, Eric. A Era dos Extremos. São Paulo, Cia. das Letras, 1995.

LACAN, Jacques. Da Psicose Paranóica em suas relações com a Personalidade. São Paulo, Ed. Forense, 2011.

LIGUORI, Guido e VOZA, Pasquale (orgs.). Verbete: Sindicatos in Dicionário Gramsciano, São Paulo, Editora Boitempo, 2017

LIMA, Maria Elizabeth Antunes. Escritos de Louis Le Guillant. Petrópolis – RJ, Vozes, 2006.

MARCUSE, Herbert. O Homem Unidimensional, São Paulo, Edipro, 2015.

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo, Boitempo, 2004.

— O Capital, Livro I – Cap. VI (Inédito). São Paulo, Ciências Humanas, 1978.

McDOUGALL, Joyce. Em defesa de uma certa anormalidade – Teoria e Clínica Psicanalítica. Porto Alegre – RS, Ed. Artes Médicas, 1983.

NASIO. J.-D. Os grandes casos de psicose. Rio de Janeiro, Ed. Zahar, 2001.

ROUDINESCO, Elizabeth. Jacques Lacan- Esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento. São Paulo, Cia. das Letras, 2008.

SELIGMANN-SILVA, Edith. Trabalho e Desgaste Mental – O Direito de ser dono de si mesmo, São Paulo, Ed. Cortez, 2011.

SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro, Ed. Record, 1999.

SLIMANI, Leila. Canção de Ninar. São Paulo, Ed. Planeta do Brasil, 2018.

TEIXEIRA, Juliana Cristina (et. alii). Uma preta sem cor: a invisibilidade do trabalho doméstico refletida em uma história de vida. In NAVES, Flavia (org.). Trabalho e trabalhadores nas sociedades contemporâneas – Outras lentes sobre invisibilidades construídas”, São Paulo, Elsevier/Campus, 2014.

TUAN, Yi-Fu. Espaço e Lugar, São Paulo, Ed. Difel, 1983.

Corpo e alma: os meandros do desejo

Corpo e alma: os meandros do desejo

Corpo e Alma

Os meandros do desejo

Dalvanira Lima, Psicanalista

04 de abril de 2018

 

À primeira vista, “Corpo e Alma” poderia ser mais um filme em que o argumento principal se baseia numa doença física ou psíquica, como tantos outros já vistos no cinema. Porém, ainda que várias características do comportamento da personagem principal, Mária (Alexandra Borbély), leve-nos a pensar que ela sofra de uma disfunção associada, talvez em algum grau, ao autismo, em nenhum momento isso se explicita; ou melhor, a construção da personagem não fica reduzida à nomenclatura de uma patologia.

No filme, Mária é admitida num abatedouro e indústria de carne bovina como controladora de qualidade. Vemos então que, embora tenha autonomia para morar sozinha e trabalhar, suas atitudes são calculadas, e os comportamentos nos parecem automatizados. Uma impressionante capacidade de memorização funciona como uma espécie de manual de instruções a que ela recorre para desempenhar as tarefas do dia a dia. É como se as experiências sensoriais não deixassem marcas e nem registro corporal, daí a necessidade de que absolutamente tudo ficasse gravado na memória.

Além disso, o que de imediato chama a atenção de seus colegas de trabalho é o fato de Mária não corresponder às tentativas de integrá-la ao grupo. Quando esse comportamento é relatado a Éndre (Géza Morcsányi), diretor financeiro da empresa, ele mesmo se empenhará em dela se aproximar, no início, sem sucesso.

No entanto, o obstáculo de comunicação entre os dois parece encontrar uma maneira de ser transposto quando a psicóloga da empresa, pensando tratar-se de uma brincadeira, coloca Mária e Éndre frente a frente para se explicarem porque contaram a ela o mesmo sonho quando perguntados, em suas respectivas entrevistas, o que haviam sonhado na noite anterior.

Cena do sonho

Ambos sonharam que dois cervos, macho e fêmea, procuravam por comida numa floresta e que seus focinhos se tocavam quando bebiam água num riacho. Curiosamente, ao contarem o sonho, eles não só descrevem a cena como Éndre se reconhece como sendo o cervo macho e Mária, por sua vez, a fêmea.

O Sonho, segundo Freud, em sua essência mais íntima, significa uma realização de desejo. Desse momento em diante, em sucessivos sonhos se dará a aproximação de Mária e Éndre, cabendo a cada um se haver com os percalços de decifrar o desejo que esses sonhos revelam. De fato, na sequência dos sonhos, a alternância na presença dos cervos, por vezes juntos, outras vezes apenas o macho ou a fêmea, representa as tentativas de aproximação, nem sempre bem-sucedidas, que se dão entre os dois, na vigília.

Se, por um lado, Mária se defronta com o novo, coisas as quais ela não consegue nomear, por outro, Éndre reencontra o desejo há muito entorpecido.

E se, inicialmente, nossa atenção se fixa no comportamento de Mária, no automatismo de suas ações, que, em alguns momentos, chega a provocar risos no cinema, com o desenrolar da história, também nos voltamos para Éndre, ao percebermos o quanto os dois se assemelham quando defrontados com o inusitado do amor e do desejo.  

 É interessante observar como o fato de Éndre não ter sensibilidade em um dos braços, membro que parece mais um apêndice, aproxima e o identifica com a falta de sensibilidade corporal de Mária. Trazer para o corpo o desejo que urge no inconsciente e se revela no sonho não será um desafio só de Mária.

Éndre (Géza Morcsányi) e Mária (Alexandra Borbély)

Pelo lado de Mária, essas tentativas serão marcadas pela busca de reconhecimento do próprio corpo. Mais uma vez, ela recorre ao manual de instruções e à concretude das experiências, lançando-se numa jornada pelos sentidos, como se pudesse encontrar um modo de usar para cada um deles. Contudo, ainda que permita à Mária decifrar até o significado de um olhar, esse manual não dirá a ela como se comportar diante do interesse que surge em relação a Éndre. E, na tentativa de descobrir, seguem-se cenas marcantes, como a do parque, em que Mária vai observar casais se beijando, ou quando vai a uma loja de disco e passa o dia inteiro ouvindo CDs sem se decidir por nenhum; acaba então levando um de músicas românticas que a vendedora lhe recomenda.

 Finalmente, depois de idas e vindas, o encontro de Mária com Éndre, ou melhor, a união de corpo e alma, acontece quando a palavra atravessa o corpo, na declaração que ele faz à amada: “Eu te amo tanto”, ao que ela responde: “Eu também te amo muito”.  

 Esse final me fez lembrar de uma passagem em que Lacan cita a frase de La Rochefoucauld: “Há pessoas que nunca se haveriam apaixonado, se nunca tivessem ouvido falar de amor”. Sobre isso, diz Lacan: “não no sentido romântico de uma ‘realização’ imaginária do amor, que fizesse disso uma amarga objeção a ele, mas como um reconhecimento autêntico do que o amor deve ao símbolo e que a fala comporta de amor”.

 Nesta perspectiva, podemos entender por que de nada adiantou para Mária ouvir de outras pessoas sobre o amor – isso equivaleria a procurar o significado num dicionário. Se o sonho estava marcado pelo simbólico quando Mária e Éndre se reconhecem nos cervos, é na assunção do amor e do que ele representa para cada um que o encontro acontece.

Corpo e Alma tem o mérito de reconhecer em Mária, que sonha, sua condição de sujeito desejante, e para o qual a subjetividade não pode se reduzir a regras adaptativas de adequação social. Na verdade, não pode e não deve se reduzir para nenhum de nós.

Corpo e Alma (Testről és lélekről, título original), Hungria, 2017, dirigido por Ildikó Enyedi.

O Caso Manson: o começo

O Caso Manson: o começo

O Caso Manson: o começo
A Infância de Manson
Gualberto Gouvêia, Psicanalista
20 de novembro 2017
Em 9 de agosto de 1969, à noite, um grupo de jovens de uma comunidade que adotavam um estilo livre de vida, invadiram a casa do cineasta Roman Polanski, em Los Angeles – EUA,  e mataram cinco pessoas com requintes de crueldade. O cineasta não estava, mas sua esposa, a atriz Sharon Tate, grávida de oito meses sim, bem como outros três convidados. O que se seguiu foi primeiro a morte de um garoto que havia ido visitar o caseiro. Em seguida mataram as visitas com tiros e facadas e, por último, colocaram uma corda em torno do pescoço de Sharon Tate e, enquanto ela clamava por sua vida e de seu bebê, Susan Atkins, chamada pelo grupo de Sadie Sexy, esfaqueava lentamente a atriz. No julgamento diria, entre cantos e risos, que quanto mais Sharon clamava por sua vida, mais ela experimentava um prazer indescritível culminando por gozar no momento em que experimentou o gosto do sangue misturado da atriz e seu bebê. Eles haviam anunciado a chegada ao grupo como sendo “o diabo” e que tinham vindo fazer o serviço do “diabo”. Escreveriam na parede coisas que pareciam desconexas como Helter Skelter e Pigs.

As investigações apontariam Charles Manson como o articular do crime. A partir daí ele seria chamado de “o maior criminoso da história”, “o número um no índice da maldade” entre outras designações. Bastante sensacionalista, mas pouco esclarecedor. A grande pergunta que se faria é: “o que teria levado aqueles jovens a praticar tal crime?”.

Manson, que havia passado a maior parte de sua vida em reformatórios e prisões, ao sair de uma delas, no final dos anos sessenta, encontraria um mundo em revolução. Os jovens haviam descoberto a pulsão de vida que neles habitava. Eric Fromm[1] os encantava com sua denúncia contra a dominação dos governos e da família, particularmente, do pai. Os conclamava a encontrarem um novo caminho harmonioso abandonando o consumismo capitalista e buscando a harmonia com a natureza. Dizia que as necessidades eram, quase todas, de origem psicológica enquanto Freud falava da libido e das pulsões, Fromm insistia na busca do amor como caminho para a felicidade. Outros autores como Herbert Marcuse, que também influenciou essa geração, afirmava sobre Freud, que ele sentenciava que o homem, para viver em sociedade, deveria se reprimir e trocar essa repressão pela sobrevivência. Ele, Marcuse[2], argumentava, no entanto, que a repressão era uma construção histórica e que a mesma poderia ser removida. Assim, o autor assinalava que havia uma “mais-repressão”, ditada pelos sistemas sociais e que seria o real causador da infelicidade humana. Marcuse pregava o fim do princípio da realidade e a importância do sexo na busca do prazer. Michael Foucault[3] também deixaria sua marca geracional com suas denúncias sobre a sociedade da vigilância e a necessidade de romper com essa dominação panóptica para que o ser humano fosse mais feliz.

Manson se confrontou com tudo aquilo que via e viu que gostava daquilo. Percebeu que havia muitos jovens desorientados em busca de um novo sentido para a vida. A Guerra do Vietnam, a Guerra Fria, eram pulsões de morte que deviam ser dominadas e excluídas naquele momento. O que importava era o prazer. Dotado de enorme capacidade de sobrevivência, aprendida nos anos em que viveu detido, ele percebeu que poderia criar sua própria comunidade livre em meio a tantas. Perspicaz e sedutor, logo intuía os potenciais membros para a “família” que pretendia formar. No caso das mulheres, deviam ter problemas de ajuste familiar e, preferencialmente, conflito com o pai. Quando percebia essas características em uma garota, logo a convidava para fazer sexo impondo uma condição: a garota deveria fazer sexo com ele pensando que o fazia com seu próprio pai. Da parte dos garotos, a conversa girava em torno da injustiça da guerra (Vietnã), a necessidade de um novo tempo de mais amor e, fundamentalmente, muito sexo sem nenhuma restrição e drogas à vontade, no caso, o LSD. Manson, que nunca havia tido uma família que o acolhesse, agora criava a sua própria. Seus membros se autodenominavam “Família Manson”. Megalomaníaco, procurou se aproximar de gente do mundo da música em troca dos favores sexuais dos membros de seu grupo. Conheceu produtores musicais e o baterista da banda Beach Boys[4], Denis Wilson, que ficou encantado pelo grupo a ponto de convencer o líder da banda, Brian Wilson a gravar uma música de Manson. Depois do crime, essa música seria retirada das cópias e se tornaria rara. Manson não ficou satisfeito com essa gravação. Achou que Brian havia modificado a essência de sua obra e procurou um produtor musical que também o recusou considerando sua música sofrível. Manson ficou furioso e tratou de armar sua vingança. Sempre havia tido o desejo de ser muito famoso, uma celebridade.  Enquanto suas chances musicais diminuíam, os Beatles lançavam aquele que ficou conhecido como “Álbum Branco”. Ao ouvir o disco, Manson criou a ideia de que aquele disco havia sido gravado para ele, um chamado dos Beatles para que ele, do outro lado do oceano, colocasse em prática o “Helter Skelter[5]”. A partir daí, Manson tentaria entrar em contato com os Beatles sem, no entanto, nunca ter obtido qualquer de sucesso. Criaria o então o seu próprio “Helter Skelter”.

Em sua psicose[6] dizia que os negros iriam começar uma grande revolução e derrotariam os brancos. Mas não teriam condições de governança e precisariam dele Manson e sua família para esse governo. Manson tratou de apressar as coisas cometendo os crimes e pensando que, com as marcas deixadas a sangue nas paredes, a culpa recairia sobre os negros e eles, revoltados, apressariam o confronto final[7]. Por conta disso, foram cometidos os crimes. A instrução de Manson: “- Cometam o crime mais horripilante possível”.

A princípio as suspeitas recaíram sobre o próprio marido, Roman Polanski, que havia filmado alguns anos antes “O Bebê de Rosemary”. Pelas características do filme e também em busca de sensacionalismo, atribuiu-se o crime a uma espécie de culto satânico. O filme, que falava do “ano um do demônio”, ou de uma era regida “pelo diabo”, seria explorada por meses pela imprensa antes de chegarem, quase que por acaso, aos autores dos assassinatos.

Situado o criminoso, o crime e a sociedade no tempo e no espaço, o propósito deste trabalho é procurar entender, dentro de limitações objetivas, a criança Manson e as circunstâncias que moldaram seu ego.

Sabemos das complexidades que envolvem as psicopatologias e as dificuldades em diagnosticá-las. No presente caso, na medida em que tomamos contato com suas particularidades essas dificuldades se tornam mais agudas e não tenho a pretensão de apresentar um diagnóstico conclusivo. O que será feito aqui será apenas um exercício que aponta, principalmente, para uma perversão sem, no entanto, fechar questão quanto a isso. Assim, concordamos com Forbes (2012) quando afirma:

“O psicanalista ou o médico que entende ter condições de objetivamente identificar e conhecer a psicopatologia tende a distinguir normal e patológico sob uma moral: se é bom é normal, sendo o patológico o mal a ser expurgado. Sua prática passa a ser corretiva e sujeita a seu próprio juízo. Torna-se totalitária, justamente porque está fechada”. (Pág. 53).

 

Charlie: de criança a adolescente[8]

A história de Charlie começa com sua avó. Nancy Maddox amava bíblia em sua fé fundamentalista e se sentia magnetizada pelas nefastas criaturas que, na Terra, realizavam o serviço do diabo. Quem a conheceu dizia que ela era tolerante com os outros e não parecia fanática. Na verdade, ela entendia que os outros eram problemas de Deus, a ela competia cuidar dos seus. Seu marido, Charlie Milles Maddox, se submetia totalmente à mulher o que, naqueles tempos, não era propriamente comum. Sempre amuado e impotente em sair de seu estado de submissão, depois de quatro filhos, Charlie Milles vem a falecer em virtude de uma tuberculose. O mundo de Nancy, que parecia harmonioso começa a ruir. Outro filho falece de pneumonia e a filha mais velha se separa do marido. Ela sente que Deus a está testando. Refugia-se ainda mais na Bíblia e tenta nela encontrar as respostas para sua sorte. Sua filha mais nova, Kathleen, adorava dançar para horror de sua mãe. Entre idas e vinda, fugas e advertências dos perigos do mundo, a jovem fica gravida de um homem mais velho que havia escondido que era casado e não assume o relacionamento. Nancy não renega a filha, mas a força a submeter-se aos valores cristãos que ela própria acreditava fazendo Kathleen prometer que a criança cresceria como temente a Deus.

Kathleen não demora em romper o trato e, tão logo tem o bebê, o deixa com sua mãe para novamente frequentar as boates que sua mãe tanto temia. Logo conhece outro homem com quem se casa. A avó assume a criança prometendo criá-lo na fé bíblica.

A quase adolescente Kathleen parecia repetir sua vocação em encontrar homens inadequados e, após algumas surras, separa-se do marido, Willian Manson, que havia dado seu sobrenome ao bebê e novamente procura frequentar as boates noturnas. Nesse período, contrata algumas babás que levavam os namorados para a casa e, enquanto o bebê estava no berço, faziam sexo diante dele. Tal fato não parecia incomodar a Kathleen, pois, ela mesma, adotava tal prática.

Charles Manson, doravante chamado de Charlie, viveu seus primeiros cinco anos de vida entre casas de parentes, incluindo sua avó, e de sua mãe.

Pensando em melhorar de vida, Kathleen e seu irmão mais velho planejam um assalto e não se dão bem. Charlie vê sua mãe ser presa e algemada. Ele, que não havia tido a presença paterna, agora, ficava sem a mãe que nunca fora muito presente. São condenados, o irmão a dez e ela a cinco anos de prisão. Em virtude dessa prisão e pensando em deixar a criança mais próxima da mãe, Charlie é encaminhado a morar com sua tia – que tinha uma filha, Jô Ann. Ela havia se casado novamente morava próxima da penitenciária.

Melanie Klein afirma que “encontramos no adulto todos os estágios do seu desenvolvimento na primeira infância[9]”. Afirma a autora, que estão no inconsciente todas as fantasias recalcadas que serão controladas pelo superego. Para ela, os recalques profundos se dirigem contra as tendências mais antissociais.  Penso que aqui podemos fazer uma intersecção com o postulado por Stoller[10] ao assegurar que a perversão é uma fantasia posta em ato por meio de uma estrutura defensiva construída ao longo dos anos.

Charlie, até os cinco anos não havia convivido com nenhuma figura paterna. Suas fantasias edipianas foram incompletas. Klein[11] ressalta a importância edípica no desenvolvimento da personalidade, tanto das pessoas normais quanto das neuróticas. É de se imaginar o efeito que deve ter tido na criança a visão de vários homens diferentes sobre sua mãe que lhe negligenciava e nem de perto era a “suficientemente boa” de Winnicot.

Charlie era uma criança desagradável que ninguém queria por perto. De estatura abaixo da média para sua idade, era mirrado, mas, talvez para compensar sua fragilidade, gostava de contar lorotas e tinha rompantes de raiva quebrando coisas às escondidas e não assumindo a culpa. Era obcecado por ser o centro das atenções. Se não conseguia ser notado por fazer algo certo, comportava-se mal estando sempre disposto a isso. Seus parentes e amigos diziam que ninguém ficava relaxado quando Charlie estava por perto.

Charlie é levado a estudar na sala de uma professora que seria lembrada por sua crueldade. Dispunha os alunos segundo sua preferência. Os mais queridos na primeira fileira e os mais odiados, na última. Charlie foi apresentado por ela a seus novos colegas de classe como sendo uma criança terrível e que tinha uma mãe presa. A professora era conhecida, em um tempo em que bater era permitido, por ter palavras mais cortantes e impactantes do que qualquer surra possível. Ao final do primeiro dia Charlie, que nunca chorava, mesmo quando apanhava de sua mãe ou de sua avó, chorou copiosamente ao chegar da escola. Seu tio disse a ele que chorar era coisa de menina e, no dia seguinte, ao ir à aula, o fez vestir uma camisola de sua prima, bem maior que ele e ir à escola com aquela roupa. Charlie nunca esqueceria esse fato e sua prima diria o quanto ele ficou desesperado nesse dia.

Podemos imaginar o ódio que sentiu a criança, que gostava de ser o centro das atenções, de sê-lo por esse motivo, Foi objeto de escárnio por parte da professora e dos colegas de classe. Ao se recusar a voltar à escola no dia seguinte, foi surrado pelo tio. Segundo Stoller[12], o ódio sustenta a formação perversa e ódio não faltava ao pequeno Charlie. O momento de Charlie é, de acordo com Klein[13], exatamente aquele em que o menino está buscando a fixação com o pai. Neste caso, ele não existe e nem sequer a mãe. Assim, ainda de acordo com a autora forma-se a base de uma personalidade antissocial uma vez que essa relação será fundamental para todas as demais relações na vida.

O afastamento do objeto amado, no caso, a mãe, se deu de maneira absolutamente concreta. Ela estava presa. Seu pai, por sua vez, o havia renegado e o amor, o afeto que poderia sentir vai se transformando em aversão.

Charlie poderia, em sua fantasia, preparar o tio, a professora, a mãe e tantos outros que ele odiava, em um banquete a ser servido a ele mesmo.  Charlie não demonstrava nenhum arrependimento por seus atos, os quais ele não assumia. Sua capacidade de amar parecia inexistente e não fazia por onde se sentir necessário ou amado.

Quando havia uma confusão entre Charlie e a prima Jô Ann, a razão era sempre dada à menina, muito por conta dos antecedentes de Charlie, Com o tempo ele constataria que certo ou errado, ele sempre seria o errado e então, não se preocuparia mais em fazer o certo. Foi por essa época que sua prima afirma que Charlie começou a se interessar pelo manejo de facas a ponto desse se tornar seu principal interesse. Certa vez ele chegou a ameaçá-la com uma espécie de foice.

O convívio com seus tios, avó e mesmo a mãe com seus diversos parceiros,  fez Charlie acreditar mais tarde que, para uma criança, o melhor seria ser criada longe dos pais. Diria ele que uma criança nasce livre e assim deveria permanecer para poder se desenvolver sem restrições.

Kathleen sai da prisão e passa algumas semanas com o filho. Estes seriam, no dizer de Charlie, os melhores dias de sua vida. A esse respeito recorremos a Stoller[14] quando enfatiza a relação primária com a mãe e não a escolha objetal primária. Para ele, a afirmação da masculinidade demandaria um esforço adicional para a separação e desidentificação com a mãe.  O garoto não tinha, porém, outra pessoa que não fosse a própria mãe que não tardou a perceber que ele gostava de manipular as pessoas e só se interessava por quem podia lhe ser útil. Essa aproximação não duraria muito.

A mãe de Charlie ainda se sentia atraída por bebida e dança e, por algum tempo, se prostituiu. Foi nesse mundo que conheceu um novo companheiro que, alcoólatra e sem trabalho, foi levado para sua casa, imediatamente demonstrando pouca tolerância com seu filho.

Charlie fugia da escola, mentia e praticava pequenos furtos com oito anos. Ele achava que tudo o que queria deveria ser seu.  Kathleen então o coloca em uma escola interna que aceitasse alunos problemáticos. Os padres que dirigiam essa escola costumavam bater nos alunos com um bastão de um metro de comprimento. Charlie conheceria o peso desse bastão muitas vezes.

Com treze anos pratica seu primeiro assalto a mão armada e vai para a “cidade dos garotos”, local para jovens infratores onde os adultos podiam disciplinar os jovens à vontade. Era liberado para os mais velhos brutalizarem os mais novos física e sexualmente. Lá, Charlie foi estuprado tantas vezes que, sessenta anos mais tarde diria que não vinha nenhum problema no estupro. Era só se limpar e seguir adiante.

Aqui temos um momento traumático em que a identidade de gênero é brutalmente atingida. De acordo com Stoller[15], nestes casos o sujeito tenta reorganizar sua vida psíquica a partir da negação de seus efeitos. Procurará reencenar sua vida sexual tal qual em um teatro procurando afirmar a vitória sobre o agressor e a reversão dos papéis tentando, desta forma, uma exemplar vingança. Charlie não perderia a oportunidade.

Ferraz[16] assinala que a perversão na obra de Freud possui três momentos, sendo o primeiro, em “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905)” quando sublinha a neurose como o negativo da perversão. O segundo momento se dá em “Uma criança é espancada (1919)” quando afirma a teoria do complexo de Édipo e, finalmente, em “Fetichismo (1927)” quando a associa à clivagem do ego.

Esse talvez seja uma possibilidade no caso de Charlie. Foi preciso cindir seu ego para sobreviver. Uma parte de seu ser deveria negar o que lhe acontecia para que pudesse seguir adiante.

Com o tempo, foi criando a estratégia de demonstrar insanidade para afastar o abusador, o que nem sempre dava certo mas serviu como treinamento para suas façanhas posteriores, inclusive em seu julgamento no caso Sharon Tate.

Nesse reformatório, Charlie foi avaliado como tendo um terrível senso de inferioridade, mas que ainda era sensível e disposto a amar o mundo. Ele havia manipulado seu avaliador. Manipulação e estratégias para obter o que queria, faziam parte da vida de Charlie.

É pego sodomizando um garoto com uma faca em sua garganta, o que, na época, era um crime só abaixo do assassinato. É mandado, com dezessete anos para outro reformatório onde se envolve em outras indisciplinas, sendo três delas atos homossexuais. Sua peregrinação por reformatórios – entre os mais terríveis dos EUA –  continua até que os avaliadores dissessem que ele estava além de qualquer reabilitação.

Charlie é libertado com vinte e um anos e vai tentar morar com sua mãe que o rejeita. Passa então a maior parte do tempo com sua avó que ainda pensava em fazer dele um religioso. Sua avó o obrigava a assistir aos cultos dominicais como contrapartida do abrigo fornecido. Nos cultos, Charlie ouvia os sermões dos pastores que diziam que a mulher deveria ser subserviente ao homem, abandonar a individualidade, esvaziar-se totalmente para se entregar a Deus. Ouvia sobre o livro do Apocalipse que falava sobre o “poço sem fundo”. Ele não esqueceria esses sermões e os usaria para angariar adeptos e formar a narrativa que convenceria sua “família” futura.

Em mais uma tentativa de aceitação social, consegue ser convidado para uma festa de “dia das bruxas”, no entanto, é totalmente ignorado pelos demais participantes, mesmo tendo se dedicado na obtenção de uma fantasia adequada. Esse é um episódio de sua história que o deixou muito abalado. Depois disso, passa a ser ignorado por todos, na rua, no mercado, em qualquer lugar. Era o excluído.

Apesar de suas experiências homossexuais, Charlie era mais atraído por mulheres e, mesmo contra todas as expectativas, consegue se casar e tem um filho. Por um breve espaço de tempo, tenta seguir uma vida normal mas seu impulso por uma vida abastada o leva a roubar carros seguidamente até ser preso.

Maior de idade, agora vai para uma prisão de adultos e lá aprenderá com os mais velhos como submeter as mulheres à sua vontade: deveria escolher as corretas, aquelas com problemas paternos, de baixa autoestima cairiam mais facilmente. Seria fundamental separá-las dos amigos e da família e combinar carinho com espancamentos para que se lembrassem de “quem mandava”.

Charlie ficará na prisão até os trinta e dois anos, quando ganha a liberdade. Nessa ocasião, pede para continuar preso, pois se sentia deslocado fora da prisão. Ele dizia que a cadeia era o seu verdadeiro mundo, onde ele tinha mais tranquilidade. Ninguém o ouviu.

E Continua…

Ferraz[17] salienta que “a formação de uma perversão resultaria de uma fixação infantil num estágio pré-genital da organização libidinal”. Em Charlie, a experiência aglutinadora que poderia resultar em uma sexualidade normal foi interrompida. Nem na infância, nem na adolescência, ele teve oportunidade de experimentar uma evolução psíquica adequada.

Em Charlie podemos tentar encontrar a divisão do ego. Ele viu diversos homens possuindo sua mãe. Presenciou isso. Acompanhou seus gemidos nos primeiros anos de vida. Esses homens deveriam ser altamente ameaçadores a ele, no entanto, nenhum permanecia. Poderia ser, em sua mente, um momento de afirmação de sua condição de menino. Enquanto seu desejo o impelia à mãe, a realidade expulsava esse desejo e o reprimia.

O perverso procurará criar um cenário em que sua castração seja negada. Charlie foi negado por todos, estuprado continuadamente. Depois de preso, abandona a mulher e seu filho e procurará criar um mundo particular, mas, ao mesmo tempo, negará esse mundo projetando-lhe um final apocalíptico. Charlie usará as pessoas como “palitos de fósforos que se queimam” [18].

Melanie Klein[19] assegura que as crianças podem demonstrar tendências criminosas e estas são as que, costumeiramente, mais fantasiam a agressividade de seus pais. No caso de Charlie, ainda que sua mãe não o agredisse fisicamente com constância, seus parentes o faziam e a própria mãe, ao recusar seu filho, fosse por imaturidade, fosse pela inadequação ao papel de mãe, marcou em Charlie a ofensa, a falta de afeto positivo.

Charlie cresceu em um ambiente onde seu superego foi sendo enfraquecido. No lugar, cresceu o sadismo, a angústia e o círculo vicioso entre o ódio e a ansiedade, no dizer de Klein[20], tendências destrutivas que não se rompem se o indivíduo continua sob a tensão das primeiras situações de aflição.

A formação (ou deformação) de Charlie se deu de modo linear. Ao tomarmos conhecimento de sua história, parece que um enredo se delineava com um final programado, no entanto, quantas crianças tiveram formação semelhante, passaram por momentos difíceis e não tiveram o mesmo destino? Quais são as condicionantes sociais e singulares que determinam o caminho que será seguido?

Perguntas…

[1] Entre seus vários livros, destacamos “Psicanálise da Sociedade Contemporânea” e “Ter ou Ser?”, todos editados pela Zahar.

[2] Dele, destacamos “Eros e Civilização”, ed. Gen e “O Homem Unidimensional”, Zahar.

[3] Vigiar e Punir, Ed. Vozes.

[4] À época, a banda disputava com os Beatles a supremacia pelos discos de rock mais emblemáticos. “Pet Souds”, desse período é, até hoje, saudado como o segundo mais revolucionário de todos os tempos, só superado por “Sargent Pepers” dos Beatles.

[5] Nome de uma das faixas do disco.

[6] Impossível não lembrar do caso Schereber e sua própria concepção de mundo.

[7] Importante lembrar que nessa época, os conflitos raciais nos EUA estavam no seu auge, com Martin Luther King tendo sido assassinado um ano antes e em plena efervescência dos “Panteras Negras”, grupo nada pacifista que pregava o confronto armado.

[8] A base para a construção do perfil de Charlie criança será o livro de Jeff Guinn, Manson – A Biografia, Rio de Janeiro, Ed. Darkside, 2014.

[9] KLEIN, Melanie.  Tendências Criminais em Crianças Normais in Contribuições à Psicanálise, São Paulo, Ed. Mestre Jou, 1970. Pag. 233.

[10] STOLLER, Robert. Perversão – A Forma Erótica do Ódio, São Paulo, Ed. Hedra, 2015.

[11] Op.cit.

[12] Op. Cit.

[13] Op. Cit.

[14] Op. Cit.

[15] Ibid.

[16] Ferraz, Flávio Carvalho. Perversão. São Paulo, Casa do Psicólogo, 2015.

[17] Ibid. pag. 32.

[18] Expressão retirada do livro de Ferraz, Op. Cit.

[19] Klein, Melanie. Sobre a Criminalidade in Contribuições à Psicanálise, São Paulo, Ed. Mestre Jou, 1970.

[20] Ibid.

O pequeno Charlie
* Texto originalmente apresentado como conclusão de ciclo para formação psicanalítica no Centro de Estudos Psicanalíticos.

A Acústica do recordar

A Acústica do recordar

A Acústica do recordar.
Tempo de escutar, tempo de lembrar.
Nadia Jorge Berriel, Psicanalista
24 de outubro de 2017
Em Minnesota, nos Estados Unidos, foi construída uma sala que bloqueia 99% dos barulhos externos, lugar que ficou conhecido como o “mais silencioso do mundo”. Os pesquisadores que desenvolveram essa sala anecóica dizem que quase ninguém é capaz de permanecer no local por mais do que 45 minutos, pois o silêncio pode induzir alucinações e causar mal-estar. Num ponto estratégico da sala, onde há o maior grau de silêncio, foram reportados casos de desmaios e, portanto, recomenda-se que o visitante não fique em pé no local, e que não se demore por lá. Quando os sons de fora são calados, resta-nos apenas o barulho de nosso corpo e mente, e isso, aparentemente, é intolerável.
Para além das explicações neurológicas, como, por exemplo, de que ao eliminar os sons de um lugar, nossos ouvidos tão habituados ao barulho fazem o possível para encontrar novos sons, eventualmente produzindo alucinações sonoras, o que haveria de tão insuportável em nos encontrarmos a sós com nossas estrondosas pulsações e pulsões?

Nesta época de smartphones e aparelhos tecnológicos que roubam nossa atenção constantemente através de seus bips, vibrações, apitos e luzes, é comum escutarmos casos de pessoas que deixam de prestar atenção aos sinais do corpo, como o cansaço ou a vontade de ir ao banheiro, pois estavam envolvidas em conversas nas redes sociais. Quando tentamos nos desvencilhar dos aparelhos, um aviso sonoro nos lembra de que uma nova mensagem foi recebida ou que um amigo deu like no último post. Usamos tais distrações externas, visuais e sonoras como via de escape da angústia que sentimos, e que tentamos calar e esquecer.

Habituados a essa toada escapista da vida cotidiana, pode ser espantoso deparar-se com indivíduos que parecem caminhar em silencioso descompasso com o agito contemporâneo, absortos na lembrança de um acontecimento traumático, incapazes de evadir desses sentimentos de angústia e desamparo.

Entretanto, relatos clínicos de trabalhadores de saúde mental nos centros de acolhimento a refugiados e migrantes da cidade de São Paulo nos apresentam numerosos casos de pessoas em desarmonia com relação ao alucinante ritmo de vida nas grandes cidades do país. Não há rede social digital que aplaque a necessidade de contato humano e que supra a falta que fazem os familiares e amigos perdidos na fuga, nos conflitos civis ou em desastres naturais.

O fato é que todo deslocamento geofísico abrupto acarreta alguma fratura interna; a estabilidade das representações internas que criamos a partir da realidade externa requer constantes direcionamentos provindos do “lado de fora”. Se a perturbação dessa estabilidade é corporalmente percebida após poucos minutos dentro da câmara silenciosa de Minnesota, qual o impacto do exílio nos corpos e mentes dos refugiados?

Talvez por medo de que o barulho familiar silencie para sempre, subjetivamente, a terra onde o exilado residia passa a habitar dentro dele e continua ali muito tempo depois da partida. Embora um permanente senso de si possa prevalecer, e muitos aspectos do sujeito sigam adiante enfrentando o que há de novo, pontuando e enriquecendo novas possibilidades, algo vital é, inevitavelmente, deixado para trás, perdido, encapsulado no complexo e multifacetado mundo no qual o sujeito cresceu.

O deslocamento como metáfora de uma fratura da humanidade.
A perda de uma casa ou mesmo de objetos menores, mas de grande significado afetivo, como uma colcha de retalhos feita pela avó, pode ser causa de tremendo desconforto e insegurança para quem vive o desterro. Já a perda de elementos direcionados para o próprio ego do sujeito, como referências familiares, função social e identidade de grupo, pode ser ainda mais grave, a ponto de causar uma incoerência narcísica. O sujeito, então, perde contato consigo mesmo, com o ideal do eu, ou seja, com aquela perfeição imaginária que almejamos alcançar e que nos serve de parâmetro moral ao longo da vida.

Sujeitos que fugiram de guerras civis ou conflitos insuportáveis em suas terras natais, são confrontados com a face ameaçadora do Outro, alteridade por vezes aniquiladora, que determina quais corpos são “matáveis” ou Homo Saccer, para usar a expressão de Agamben, e nesses sujeitos verifica-se uma perda do laço identificatório com o semelhante, um abalo narcísico que os lança à angústia e ao desamparo, impedindo-os de elaborar ou simbolizar os eventos traumáticos sofridos. Esses indivíduos encontram-se, então, fixados no trauma, impedidos de esquecer, de recalcar o ocorrido, ação necessária para distanciar-se do acontecimento.

A distração do zum-zum cotidiano que nos oferece descanso das lembranças e pensamentos mais aflitivos é emudecida, e o sujeito pode eventualmente encontrar-se incapaz de se relacionar com o entorno nessa estranha terra de chegada.

Embora muitos refugiados e migrantes encontrem variadas soluções pra a construção de novos laços sociais, como a maternidade/paternidade de um filho nascido na terra de chegada, o casamento com um cidadão local, emprego novo, estudos, dentre outras resoluções, algumas pessoas são tomadas por uma aflição e angústia avassaladoras, e frequentemente essa angústia é relacionada à culpa.

Em Os Submersos e os Salvos, Primo Levi escreve sobre o estereótipo consagrado pela literatura da “calmaria depois da tempestade”: depois da doença vem a saúde, após a prisão vem a liberdade, após a guerra o soldado encontra o lar, a família e a paz. Levi relata, baseado na experiência em campos de concentração nazistas, que na maioria das vezes, o momento de libertação não é tranquilo nem feliz: a sensação, para o autor, era de que soasse, sob um fundo trágico de destruição, o massacre e o sofrimento. Naquele momento em que os prisioneiros dos campos sentiam que voltavam a ser humanos, portanto responsáveis, retornavam os sofrimentos da humanidade: a dor da família dispersa ou perdida, a dor universal em torno de si, a própria extenuação, o sofrimento da vida que deviam recomeçar em meio aos destroços, e, frequentemente, sozinhos.

Além das dores e humilhações às quais os refugiados asilados no Brasil foram submetidos em suas terras natais, e que por conta da xenofobia e das condições sociais precárias continuam a ser expostos também aqui, surgem questões sobre a própria ética e a culpa pelo o destino de seus familiares perdidos, com a dúvida, nem sempre vivida conscientemente: é possível sobreviver enquanto os outros morreram?

Crises de angústia e desejo de morte são recorrentes em relatos de profissionais de saúde mental que acompanham esses indivíduos, demandando intervenções urgentes para tais casos. Busca-se ajudar o sujeito a se relançar em sua trajetória e história individual e coletiva.
É nesse ponto que a clínica psicanalítica pode agir mais efetivamente, apresentando o suporte necessário para que o indivíduo exilado consiga, num ambiente de acolhimento, reinventar-se a partir da junção de suas memórias com a realidade externa e estrangeira do momento presente.
Em tempos de comunicação virtual e tweets com 140 caracteres, o campo psicanalítico parece muito favorável ao silêncio e a vagarosidade que a elaboração e a narração de histórias íntimas demandam. A consideração da realidade psíquica como algo tão ou mais importante do que a realidade externa para o setting analítico também confluem perfeitamente com a narração oral. Uma escuta livre de julgamentos e que não demande um discurso claro e objetivo é necessária para possibilitar o aflorar de uma rememoração com lapsos, solavancos, recalques e incompletudes inerentes a um conteúdo que ainda não teve condições de ser lembrado nem posto em palavras.

Em O Narrador, Walter Benjamin aponta que na era da informação, os acontecimentos só tem valor no momento em que são novos. Oras, para um sujeito em exílio, como poderiam sua fuga, e as perdas sofridas, ter valor efêmero? A clínica psicanalítica nos revela que qualquer evento traumático para o sujeito promove repetições até que o acontecimento seja suficientemente elaborado.

Para Benjamin, o relato do passado transforma-se no “grande símbolo de esperança do narrador: de que a vida não tenha sido vivida em vão e que seu sentido – tardio, mas cuja ressignificação liberta quem viveu os acontecimentos – sirva para outrem”.

Essa seria a função precípua do ato de narrar. De fato, em muitos relatos de sessões psicanalíticas com refugiados, ouve-se de indivíduos que até então estavam tomados pela pulsão de morte, que eles não podem morrer, pois precisam passar adiante a história de suas terras, de suas famílias. Precisam manter viva a memória de seu povo através da narração, do compartilhar das experiências vividas.

Os relatos das lembranças dos refugiados correspondem a um forte sentido para a vida de quem efabula, e no momento da enunciação tem a potencialidade de colocar o enunciador como sujeito central em sua história, o que contribui para um deslocamento da situação de vítima de um destino cruel e aniquilador, para o lugar de sujeito dono de desejos, sonhos e de sua própria história.

Dante escreveu na Divina Comédia que “não há dor maior do que a de nos recordarmos dos dias felizes quando estamos na miséria”, todavia o seu oposto também é verdadeiro, pois narrar a miséria sofrida quando nos encontramos a salvo traz alívio e contribui para o processo de elaboração e ressignificação dos males vividos.

Quando Primo Levi estava preso no campo de concentração, teve repetidas vezes um sonho, que era sonhado similarmente por vários de seus companheiros: sonhava que retornava para casa, e que com intensa felicidade e alívio podia finalmente contar aos parentes e amigos o horror já passado e ainda vivido e, de repente, percebe que ninguém o escuta, e que os ouvintes se levantam e vão embora, indiferentes. Não sejamos esses personagens que não escutam, que são indiferentes ao que é humano!

Para o ouvinte dessas narrações, cabe reconhecer a posição difícil, mas privilegiada de testemunha da história, a quem a escuta acolhedora é retribuída com o compartilhamento da cultura e da história de outras terras.

Publicado anteriormente na Revista Deriva.