Narcissus Garden e o Eu ideal

Narcissus Garden e o Eu ideal

Narcissus Garden

e o Eu ideal

Dalvanira Lima, Psicanalista
18 de setembro de 2017
Observar centenas de bolas de aço deslocando-se ao acaso por entre plantas aquáticas exuberantes, num imenso espelho d’água, já seria razão suficiente para eu dizer que conheci uma bela obra de arte, dentre tantas do Jardim Botânico do Parque Inhotim, em Minas Gerais.
Porém, na minha última experiência por lá, aconteceu algo que me chamou atenção, mas que eu só percebi vendo as fotos que tinha acabado de fazer: minha imagem refletida nas bolas de aço. Curiosamente, naquele momento, ainda não sabia que o título da obra era, justamente, Narcissus Garden, da artista japonesa Yayoi Kusama, cuja versão de 2009 está instalada no Parque Inhotim e havia sido apresentada, originalmente, na Bienal de Veneza, em 1966.

O nome da obra faz referência ao mito de Narciso, um jovem de grande beleza que, apaixonado pela própria imagem refletida num lago, afoga-se ao tentar alcançá-la.

Em nosso dia a dia, também evocamos com frequência este mito e não é incomum nos referirmos àquele colega que abarrota sua página de Facebook com selfies dizendo: “Poxa, como essa pessoa é narcisista!”.

Na Psicanálise, ainda que o termo narcisismo possa estar relacionado ao adoecimento psíquico, também é utilizado para designar uma condição necessária e mesmo estrutural na constituição do Eu do indivíduo.

O Eu, unidade que se forma da integração do corpo com o psíquico para lidar com a realidade que lhe é externa, não é dado a priori, pois surge na relação do ser humano com outro ser humano, mais comumente com os pais.

Então, quando vemos pais “babando” por seu bebê, podemos entender que estão dando a ele um lugar no mundo, e o bebê, por sua vez, vai se reconhecendo como um ser enquanto razão da felicidade de seus pais.

Freud chega a dizer que, nessa fase, a criança é “Sua majestade, o bebê”. Essa condição narcísica permitirá que, mais tarde, em condições satisfatórias de desenvolvimento, o indivíduo possa destinar a outras pessoas e coisas do mundo o amor que esteve voltado unicamente para si no início de sua vida.

Portanto, durante a nossa existência, esse amor (ou precisamente a libido) estará num constante movimento pendular, ora pendendo para o eu, ora para os objetos; uma balança da qual, nossa saúde psíquica muito dependerá de seu equilíbrio.

Dessa forma, a marca de um tempo em que fomos perfeitos, um Eu ideal, que Freud chamou de narcisismo primário, jamais nos deixará, e tanto poderá ser causa de sofrimento se permanecermos alienados a esse ideal, como representar o alicerce para a emergência de um sujeito único e verdadeiro.

Na obra de Kusama, nosso reflexo como observadores em cada uma das bolas de aço pode representar a busca insana de reencontrarmos a imagem perfeita de quem um dia nós fomos.

Teletema: Sobre o luto

Teletema: Sobre o luto
Gualberto Gouvêia, Psicanalista
18 de setembro de 2017
A ideia de morte é um dos dilemas fundamentais do ser humano e nos coloca diante da reflexão sobre o sentido da vida. Buscamos construir o entendimento do que significam as diversas faltas, as separações que povoam nossa existência e a nossa própria finitude.
Por vezes, ideias difusas surgem em nossa mente como um funeral, um acidente, um cemitério, significantes presentes que nos lembram uma ausência.

O sentimento de perda sempre atormentou o ser humano. Os gregos acreditavam que os deuses poderiam se apoderar do nosso destino. Eles chamavam isso de possessão e sofriam por perderem a condição de senhores do próprio rumo.

A tradição judaico cristã considera a perda da fé um forte motivo para o sofrimento.

Nos tempos líquidos em que vivemos, a melancolia é a face mais visível desse sofrimento, da perda de si próprio, da perda dos desejos que não possuímos e que são despertados pela  cultura que torna nosso o que nos é estranho.

Na morte, os que ficam precisam conviver com o sentimento difuso de culpa por terem sobrevivido e a raiva por terem sido deixados.

Para se ter uma vida saudável, é preciso um equilíbrio entre o investimento libidinal do eu e dos objetos. É preciso aprender a conviver com a falta.

Melancolia – Munch
Tibério Gaspar é o autor da letra de Teletema, musicada por Antonio Adolfo. Essa canção foi gravada originalmente por Regininha e fazia parte da trilha sonora da novela Véu de Noiva, exibida entre 1969 e 1970.

Gaspar havia perdido sua namorada em um acidente de carro. Os dois eram apaixonados e faziam muitos planos para a vida. Em uma curva, o carro capotou e ela faleceu. Gaspar então mergulhou no luto que Freud nos diz ser “a reação à perda de uma pessoa querida ou de uma abstração que esteja no lugar dela”. No caso, era uma pessoa concreta, real. O autor confessa que perdeu o rumo com essa morte e não sabia muito bem o caminho que daria para sua vida.

Como o próprio Freud afirma, o luto nos mobiliza por um tempo, mas saímos dele aos poucos, pois nosso impulso para a vida acaba, na maioria dos casos, falando mais alto. Quando o objeto amado não existe mais, é preciso que toda libido seja retirada de suas ligações com esse objeto. Quando se completa o ciclo, o estágio do luto está vencido e pode-se viver então novamente. Teletema é um belo exemplo da elaboração e superação de uma ausência.

Para saber mais:

Luto e Melancolia, Sigmund Freud, ed.Cosac e Naify

O Homem Diante da Morte, Philippe Ariès, Ed. Unesp

Eu vou de sol a sol
Desfeito em cor
Refeito em som
Perfeito em tanto amor

Depressão

Depressão

 Depressão: Esta noite não!

Gualberto Gouvêia, Psicanalista

14 de setembro de 2017

Vivemos em tempos em que os mais frágeis, socialmente falando, se refugiam em Deus. O Estado, como garantidor de condições mínimas de sobrevivência, foi tomado de assalto pelo mercado. As grandes corporações determinam hoje o rumo das políticas nada sociais. Os remediados tentam sobreviver e os mais ricos vivem com gozo. A crise não é para todos, mas é para a maioria.

Essa crise parece estar em todos os lugares: na educação, nas ideologias, nos partidos, no Judiciário. Refugiamo-nos nas tribos, nos pequenos grupos e nos distanciamos da comunidade maior em que o outro, o dessemelhante, não merece solidariedade ou empatia. Ele é apenas mais um competidor. Com o alheamento comunitário, nos refugiamos no individualismo. Com a aceleração dos tempos, nos refugiamos na excitação contínua.
Bauman chama este período de “modernidade líquida”, mas, antes dele, Marx já dizia que, no Capitalismo, “tudo que é sólido se desmancha no ar”. Assim, esgotados pela conectividade constante, pelas incertezas que o trabalho precário nos apresenta, somos tomados pela angústia do que virá. O que se apresentará ao dobrarmos a esquina?

Tristeza do Velho Homem

Vicent van Gogh

O cantor Lobão, com sua música Esta Noite Não, soube captar esse sentimento acertadamente chamado de “indizível”. Como nominar o que não sabemos? Diante de tantas incertezas, muitos afirmam que a depressão é o mal da contemporaneidade. O autor da canção demonstra estar ciente disso e, sabedor dos riscos desse mal, implora para que, “pelo menos esta noite”, aquele que está tomado por esse sentimento que oprime “não tente se matar”. Se a crise não é para todas as classes, a depressão sim.
Com a letra dessa música, O cantor se aproxima de Sherazade das Mil e Uma Noites, que usou do artifício de contar histórias para garantir que não morreria ao fim de uma noite, quebrando o círculo vicioso de morte das esposas do sultão traído. Garantiu, assim, não uma noite apenas, mas mil e uma. Lobão também parece querer adiar indefinidamente o dia final, esperando, dessa forma, que a vida ganhe sentido e possibilite ao acometido por depressão muitas e muitas noites mais. Ou seja, sua música é um convite para a vida enquanto ela não se dissolve no ar…

O indefinível

Para saber mais: O demônio do Meio-dia: Uma anatomia da depressão. Andrew Solomon, Cia das Letras, 2016.

Vermelho Poético

Vermelho Poético

Indicação de Livro

Vermelho 

Poético

Gualberto Gouvêia, Psicanalista

07 de Julho 2017

Vermelho Amargo, de Bartolomeu Campos de Queirós, é um livro no qual o fio condutor é um tomate, que ganha contornos épicos na história e está sempre presente. Trata-se de um livro biográfico incomum. Um garoto assiste a tudo o que se passa no cotidiano. Sem a mãe, prematuramente morta, a vê ser substituída por uma madrasta desatenta ao que acontecia ao redor. O pai, sempre bêbado, não está disponível para os filhos. Assim, o menino vai desenvolvendo sua capacidade de observar tudo à sua volta.

O tomate é a sua principal referência, quase uma ampulheta, que determina o tempo e faz a marcação dos eventos. A forma do corte do tomate varia entre a quase transparência, quando toda a família está presente à mesa, e a densidade espessa, quando os familiares vão se distanciando e as cadeiras começam a sobrar.

O livro é em prosa poética. Aí, reside o melhor da obra. A delicadeza com que é tratada a ausência da mãe torna a tristeza mais suportável. “Exige-se longo tempo e paciência para enterrar uma ausência. Aquele que se foi ocupa todos os vazios”. O autor revela uma memória que se preenche da falta, do não dito, mas repleta de sentimento.

A palavra, para o autor, ganha uma gramática de sentimentos caleidoscópicos que revela e esconde. “Toda palavra é espelho, onde o refletido me interroga”. A palavra, cheia de significados, preenche cada página de significantes múltiplos e nos leva à mesa na qual o tomate é servido. Quase podemos sentir seu gosto, perceber sua cor rubra.

Os irmãos se vão, um a um. E o garoto, em determinado momento, também se vai. O tomate permanece.

Vermelho Amargo
Bartolomeu Campos de Queirós

São Paulo, Ed. Global, 2017

Vermelho Amargo é um livro para ser saboreado, lido com um lápis na mão. Serão muitas as passagens a serem marcadas para posterior reflexão. Não se esgota na leitura. Assim como o tomate, que se encorpa pela ausência dos outros, o livro se encorpa ao final da leitura porque permanece vivo.

As nossas lembranças são parte de nós. O que vivemos constitui o solo de nossa existência. Com o tempo, percebemos que um cheiro, uma palavra, um som, trazem em si muito mais que as palavras que os contêm. Trazem o indizível que só a subjetividade consegue dar contornos de entendimento.

A faca corta o tomate. O livro corta a carne feito faca. Como dizia Belchior.

Comparado ao Brasil, mundo é amador em corrupção, diz cientista político francês

Comparado ao Brasil, mundo é amador em corrupção, diz cientista político francês

Cotidiano

Gualberto Gouvêia, Psicanalista

07 de Julho de 2017

O nível de corrupção no Brasil demonstra quão elástico é o superego de nossa classe política.

Por outro lado, constatar essa corrupção não nos leva a maiores manifestações de indignação além de um bater de panelas nas sacadas e vociferações nas redes sociais. Nesse sentido, o Real lacaniano surge como sobra de algo que não foi.

Um Brasil que ficou pelo caminho em sua construção como nação. O próprio “mercado”, fiador das “reformas” em curso, admite-se enojado com a República de Temer, mas tendente a tolerá-lo em nome de seu lucro incessante. Assim, o desencanto germina nas novas e velhas gerações. Um tédio ameaçador de que nada mais surpreenda nesse mundo e nos tornemos cada vez mais ensimesmados e contemplando o mundo de nossas janelas. Nesse mundo, o horizonte é a parede mais próxima.